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A última barbearia antiga de Estremoz (reportagem)

Nuno Mourinha texto Gonçalo Figueiredo foto

A 26 de março de 1926 abria, na Rua Victor Cordon nº 15, uma barbearia. 

Idos 96 anos, a mesma morada alberga a venerável loja. Pouco mudou. As cadeiras, onde incontáveis clientes desbastaram barba e cabelo, deixaram de ser de madeira. São mais modernas. De duas passaram a uma. O soalho já não é de madeira. A cadeira já não abana. A bancada de mármore e o ancho espelho estão na mesma. Os estrangeiros acham piada. Pedem licença para tirar fotografias. De vez em quando, por correio, chegam retratos. Oriundos de outros cantos do mundo, enviados pelos fotógrafos. O destinatário é António Chouriço. Há quase 88 anos que esta é a sua morada. Foi nesta morada que nasceu e a ela está perpetuamente ligado. Bem, quase perpetuamente. Quando o irmão mais velho veio da tropa, esteve uma dúzia de anos na barbearia Chique, lá para os lados do correio, na Rua 5 de Outubro. Como é fácil de constatar, António Chouriço herdou a profissão do pai [e do irmão mais velho], barbeiro. 

Quando o irmão mais velho decidiu, como tantos outros, tentar a sorte em Lisboa, António voltou para a barbearia do pai. Nunca saiu de Estremoz. Poderia ter ido. Teve convites, mas nunca aceitou. “Sou teimoso. Sou mesmo estremocense. Tenho gosto por Estremoz. Especialmente por esta rua, foi aqui que nasci e é ainda aqui que estou”, afirma. 

Atualmente, a azáfama é menor. António Chouriço precisa de mais descanso. Por outro lado, tem necessidade de ali estar. A barbearia é o lugar perfeito para dois dedos de conversa. Sempre assim foi. Fala-se ali de tudo. De política a futebol. O interior da loja é um espaço neutro. “Tanto fico contente quando o Porto e o Sporting perdem, como quando o Benfica ganha”, graceja. 

Um dos seus primeiros trabalhos, ainda como aprendiz, era o de estar de sentinela. Eram outros tempos. De ditadura. Os horários eram rigorosos e fechava-se ao domingo. Na altura, existia, em Estremoz, um fiscal do horário de trabalho inflexível. Chamavam-lhe o austríaco. António não sabe porquê… talvez pela cor do cabelo, talvez por outro motivo qualquer. Alguns clientes só conseguiam ir ao barbeiro no domingo. O pai e o irmão tinham de trabalhar de porta fechada, à socapa. António era destacado para patrulhar o passeio e dar o alerta se avistasse o fiscal. Quando lhe perguntamos como se aprendia a ser barbeiro, António responde “a observar e a praticar nos clientes”. Confessa, que nem sempre corria bem. 

Para ele, hoje é mais fácil ser barbeiro. Há máquinas elétricas. Dantes era tudo manual. Contudo os cortes são mais exigentes. “Dantes era só aliviar, desbastar. Os trabalhadores rurais passavam um, dois, três meses sem cortar a barba ou o cabelo. Só o faziam quando vinham comprar botas, ou os safões para a ceifa, às feiras. Não havia horários e trabalhavam [no campo] de sol a sol”.

Em tempos idos chegaram a existir 22 barbeiros em Estremoz. A dada altura, deu por si a ser o único barbeiro. Só havia cabeleireiros. “Felizmente, há novamente uma jovem geração de barbeiros”, diz agradado. 

Durante 30 e muitos anos, foi voluntário no posto de socorros da cruz vermelha. “O serviço era das nove da noite em diante, até que houvesse serviço”. O serviço constava de tudo. Raio X,  tratamentos, injeções, consultas, médicos que prestavam serviço gratuito. Em tempos de gripe chagavam a dar 40 consultas. “No outro dia, toca a abrir a barbearia. Era isso mesmo o voluntariado. Nunca de lá se ganhou um tostão. Aprendi muito e arranjei muitas pessoas amigas. Não estou arrependido”. Contudo, tem pena que outros, como o Dr. Assis e o enfermeiro Fortio, que com ele colaboraram se encontrem esquecidos. “Mas, se pudesse voltar atrás, faria precisamente o mesmo”.

Quem passar pela porta da barbearia, em alturas de menor movimento, e espreitar para o interior irá deparar com António a devorar um livro. Sempre gostou de ler. É um vicio que tem desde miúdo. De inverno, em redor da braseira, enquanto a mãe se entretinha a cozer trapos, António ouvia a irmã mais velha a ler, em voz alta, os romances que vinham nas páginas do jornal “O Século”. Talvez por isso, desde que começou a ler, nunca mais parou.

Com a leitura ‘viaja’ pelos cinco continentes. Com os livros já ‘visitou’ meio mundo.

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