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Zé Gandaia, uma planície com inclinação

Sendo uma retrospetiva, a exposição varre o tempo. No entanto tem algumas obras pictóricas, que poderão no futuro, vir a ser clássicos da pintura portuguesa. Alexandre de Barahona (texto e fotografia)

“Nunca pensei chegar aos 30, já estou nos 63… devo ser um suicida falhado”, ironiza o pintor Zé Gandaia, conhecido em Évora como o Zé de Arraiolos. Diz que não sabe de onde lhe vem a queda para o desenho, a pintura. Nascido em Moçambique, veio para o Continente dois anos depois da independência, e ficou marcado pelos horrores que vivenciou nessa época. 

Aos 16 anos, no Alentejo, “não tinha dinheiro nem vocação de ir para a taberna, que era aquilo que se fazia na altura. Então ia para o campo, para o rio nadar, explorar as grutas e aí começou o meu encantamento com as cores, com a luz e a pintura”. Em jovem pensou que poderia ser biólogo marinho, mas a vida resolveu de outra forma, recolhendo-se em Arraiolos, “uma terra linda e sossegada, vamos ao castelo e temos uma varanda para o Alentejo”.

Aos 19 estudava em Lisboa na Escola António Arroio. No entanto diz que se enganou no curso. Tirou design gráfico, quando o que queria na realidade era uma área mais artística, então “fugia das aulas de logótipos, para a sala do lado, assistir ao desenho figurativo”. Fartou-se do desenho gráfico em Lisboa, e regressou ao Alentejo “carregar fardos”, assegura rindo-se. 

Por cá andou anos a fio, desenhando cartazes, painéis, sobre o 25 de Abril, a Feira de São João de Évora, os Povos e as Artes, a pintar cenários das conferências da Reforma Agrária, do 1º de Maio. “Ando a fazer cartazes há 40 anos, já não sei o que inventar! Pintei centenas e centenas de metros (quadrados) de painéis e de murais, empreitadas que eram na grande maioria de graça, em regime de voluntário”. E ainda o faz.

Conversamos, ambos rodeados pelas suas cores e traços na sala de exposições do Centro Interpretativo do Tapete de Arraiolos (CITA), ao lado dos Paços do Concelho, onde até meados de maio decorre uma exposição retrospetiva em sua homenagem intitulada “Que memórias vestirei hoje?”. Uma mostra com inúmeros quadros, cartazes e desenhos deste artista alentejano. Algumas destas obras poderão no futuro serem referências da pintura portuguesa, e refiro-me entre outras, a um acrílico sobre tela, de 2007 e sem título, mas representando um quadro de lavadeiras numa ribeira, de coleção particular.

Há outros, mas este em particular ficou-me na retina. Sobre ele, a historiadora de arte Raquel Henriques da Silva escreveu: “Tudo é tranquilo, real e irreal ao mesmo tempo porque a minúcia descritiva dos motivos acaba por introduzir uma espécie de inquietação. Como se as pedras e a folhagem estivessem em processo de metamorfose vital”.

Confessa que antigamente admirava Dali, Picasso, Miró, contudo nos dias de hoje, apesar de manter o Picasso entre os seus “heróis”, diz conseguir gostar de Rafael, e Da Vinci. Porque “é da idade. Uma pessoa vai passando por metamorfoses durante a vida. Quando jovem havia coisas que eram certezas que tinha, e hoje sei que são disparates”. O tempo leva-nos a apurar as preferências, o conhecimento.

José Mira da Silva (Zé Gandaia) repete ao longo da entrevista que nunca teve jeito para o negócio. Resignado porque jamais um galerista da capital lhe propôs coisa alguma. Confrontado com essa possibilidade poder vir a acontecer, questiona “Agora? Com 63 anos?”… e depois de alguns segundos de reflexão: “Não sei como lidaria com uma coisa dessas”.

O Zé Gandaia “é uma grande figura do nosso concelho, não só pela qualidade do seu trabalho, como pelo simbolismo que representa”, testemunha Rui Lobo, historiador e responsável técnico do CITA. “É comum reconhecermos o seu traço, quando olhamos cartazes, pinturas, murais, identificam-se facilmente como sendo da sua autoria”. Uma dessas curiosidades são os vidrões que vamos descobrindo pelas ruas da vila de Arraiolos, completamente decorados pelo artista plástico. Uma originalidade que recorda, os famosos tapetes locais.

A dado momento, eis que o pintor nos revela um segredo: “Quando era mais novo, adorava fazer pintura abstrata. Mas como aqui é insultuoso, ninguém a aprecia, ficava a falar sozinho”. Surpreso por esta observa- ção, replico que isso também é o reflexo de uma certa ignorância geral, por parte do público. Isso condicio- nou-o no seu trajeto? Reconhece que sim: “Pintei ainda alguma coisa, mas foi tudo parar ao lixo”. Desastroso, digo eu, até moralmente me insurjo, desta gaiola onde a falta de conhecimento ainda comprime os espíritos. Florbela Espanca bem o expressou, nos seus versos. 

Nem a propósito, este pintor também escreve, e bem. Alguém me disse que apreciava mais a sua escrita que certa pintura. “São duas áreas que se complementam em mim. É um automatismo, sem preparação, escrevo de rajada”. Tal e qual um pincel deslizando sobre uma tela, imagino. “Depois corrijo, aqui e acolá”. A pintura de Zé Gandaia segue as margens do rio onde nadava na sua adolescência.

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