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Sabia que as casas de Monsaraz tinham muitas cores?

Luís Godinho texto | João Frutuosa fotografia

A imagem que hoje associamos à vila de Monsaraz parece “autêntica” e será “autêntica” se olharmos apenas para o último meio século. Na verdade, a fachada das casas não era a “monocromia de branco” que hoje damos como certa, antes era feita de muitas cores, pigmentos naturais adicionados à cal. Em “Monsaraz – Reconstruir a Memória”, Ana Paula Amendoeira traça o processo de evolução de Monsaraz ao longo do século XX 

Associar uma cor, qualquer uma exceto o branco, à imagem urbana de Monsaraz é algo que, na aparência, não faz sentido. É Ana Paula Amendoeira que o diz, sublinhando que a “monocromia do branco, alimentada e oficializada desde a década de 60 como ‘imagem de marca’ do conjunto, permite que falemos hoje de uma arqueologia da cor em Monsaraz”. Sucede que nem sempre assim foi. E que, historicamente, as casas da vila não eram todas caiadas branco, apresentavam múltiplas cores.

“O uso massificado do branco na pintura das fachadas foi considerado, desde a década de sessenta, fundamental para devolver tipicidade à vila, integrando-a na monumentalidade da cal e da pedra. Anulou-se assim toda a diversidade cromática própria da vida e da alma do conjunto urbano”, escreve Ana Paula Amendoeira em “Monsaraz – Reconstruir a Memória”, livro cuja segunda edição (a primeira está há muito esgotada) foi lançada na Casa do Alentejo, em Lisboa.

Na obra, editada pela Colibri, a autora, especialista em património e atual diretora regional de Cultura do Alentejo, revela que através de fotografias anteriores a esse período, década de 60 do século passado, “podemos ter uma ideia do número de casas com rodapé ou mesmo com as fachadas totalmente pintadas com as cores tradicionalmente usadas no Alentejo”, o que é igualmente confirmado por trabalhos científicos realizados no local. Trabalhos que revelaram “uma proliferação cromática, onde identificámos o almagre [cor avermelhada], a oca, o roxo rei e o negro de fumo (‘pó de sapato’), cores produzidas a partir de pigmentos naturais (terras, pigmentos metálicos e orgânicos) adicionados à cal depois de extinta com água”.

Ana Paula Amendoeira lembra que a “fraca durabilidade da pintura com cal está na base do ritual das caiações, geralmente mais do que uma vez por ano”, sendo essa altura aproveitada pelos moradores para, por vezes, modificar a cor das habitações. “A alteração da cor nos rodapés e nas fachadas era frequente, não só por pura renovação cíclica da imagem, mas também na sequência de reparações de edifícios se aplicava uma cor mais escura para camuflar as cicatrizes da intervenção”. 

Assim, em muitas fachadas foi possível identificar “uma estratigrafia das várias pinturas diferentes”, sendo que a utilização de múltiplas cores radicava “na necessidade de individualização dos edifícios e na sua apropriação por parte dos proprietários e/ou moradores”. 

 No capítulo do livro onde aborda a “transformação e mistificação urbana” de Monsaraz, a autora acrescenta que a cor era também um “elemento fundamental” no interior das habitações. “A memória da cor ainda existe na população residente, embora nenhum habitante ouse descaracterizar a imagem da terra, pintando de cor a fachada da sua casa. Atualmente é um dado unanimemente aceite que uma das características ‘autênticas’ de Monsaraz é a homogeneidade do branco”.

CICLOS DE DESENVOLVIMENTO

Numa nota a esta segunda edição, Ana Paula Amendoeira explica que o trabalho resultou de uma investigação documental, trabalho de campo e escrita realizado entre 1996 e 1998, “com uma bolsa de investigação do Ministério da Ciência e validado por um júri onde foi arguente o Arquitecto Nuno Portas”.

“Passaram 24 anos e Monsaraz é hoje muito diferente da Monsaraz que estudei. Mas, num olhar mais demorado percebemos que não é necessariamente exata esta afirmação apesar de ser obviamente verdadeira. Quando nos detemos no programa de estudo deste trabalho, o processo de conservação e transformação de Monsaraz ao longo do século XX, as suas causas, consequências e possíveis trajetórias a evitar ou a incentivar no futuro, damo-nos conta de que se trilhou o rumo preocupantemente então identificado. E é talvez essa constatação que pode justificar eventual interesse nesta reedição”.

Na conclusão do seu trabalho, Ana Paula Amendoeira sublinhou a existência de “três ciclos fundamentais para a compreensão” da história recente de Monsaraz. O primeiro, entre as décadas de 40 e 50 do século passado, com a reconstrução de grande parte da fortificação medieval. O segundo, a partir da década de 60, iniciado com “aquisições massivas de prédios em mau estado de conservação, com as consequentes intervenções, determinantes, sobretudo nos edifícios de habitação particular”, geralmente realizadas “sem projeto e sem qualquer registo do existente, com base num gosto centrado na tónica pitoresca”. 

Finalmente, o terceiro ciclo, apresenta-se como “marcado pelos grandes investimentos públicos feitos em Monsaraz, com objetivo de qualificar a vila para o desenvolvimento turístico, sem o suporte de estudos ou planeamento, ao mesmo tempo que continuam as intervenções privadas na linha das anteriores, reproduzindo-as sem qualquer coerência ou intencionalidade”.

Ou seja, defende a autora, “os princípios internacionais da conservação urbana não foram tidos em conta. As alterações de uso e tipológicas dos edifícios, e de toda a vila, processaram-se com justificações e fundamentos alheados das práticas de conservação internacionalmente aceites. A arqueologia urbana é praticamente inexistente em todas as obras realizadas”.

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