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Sabe a diferença entre “embezanado” e “encharnicado”?

Luís Godinho (texto)

“Falares e Ditarenhos do Alentejo”, de Luís Miguel Ricardo, reúne “dicionário de falares” com cerca de seis mil significados e centenas de ditos tradicionais alentejanos.

Palavra que, por aqui, se hão de cruzar palavras curiosas com outras que viajam, mas por agora Luís Miguel Ricardo, professor e investigador do linguarejar alentejano, puxa para a conversa expressões que só fazem sentido no contexto de quem cresce com elas. Veja-se o exemplo de um diálogo muito provável num qualquer lugar deste imenso Alentejo, quando à pergunta “como vai essa saúde?” sai disparada a resposta de “não tem dúvida”.

“O sentido literal da conversa é absurdo e difícil de decifrar”, comenta Luís Miguel Ricardo. “Pergunta-se a alguém se está bem de saúde e esse alguém responde que não tem dúvida. Mas não tem dúvida do quê? Parece uma resposta descontextualizada da pergunta, porém qualquer alentejano sabe que o não ter dúvida, neste cenário de resposta, significa estar razoavelmente bem de saúde”.

O que não faltam são “expressões” típicas, tais como “hoje está aí grande calmêro”; “o moço do primo-ermão do Engéino pôs-se dempelão e jogou-se de bico para o pego do Quatro-olhos” ou “tás aqui, tás com ela na gola”. Confuso? Nem tanto, se por “calmêro” se entender um dia de muito calor, se se souber que “dempelão” é “estar despido” e, claro, que “estar com ela na gola” é chegar ao limite da bebedeira.

Uma vez ultrapassado este ponto, qualquer “parrascana” (pessoa simples) chega a casa “embezanado” [embriagado] podendo até tornar-se “encharnicado” com quem encontre pelo caminho. “Encharnicado”? Sim, irritadiço.

Há mais de 12 anos que Luís Miguel Ricardo se dedica ao trabalho, “permanentemente inacabado” de “preservar e promover” o linguarejar alentejano. Daqui resultou a edição de um livro, “Falares e Ditarenhos do Alentejo”, agora com uma quarta edição, revista e ampliada, que envolveu “muito trabalho solitário”, mas também “muito trabalho de campo e colaborativo” pois, como frisa o autor, “algumas centenas de pessoas contribuíram para esta safra de palavreado”.

Segundo refere, “não sendo a recolha e catalogação de termos alentejanos ou de outras geografias um trabalho singular, pois há vários projetos alinhados com as mesmas finalidades, este apresenta uma organização diferente, apresenta termos e expressões, desenvolve artigos sobre palavras e termos icónicos da região, procurando contextualizá-los e explicá-los”. O que nem sempre é fácil, desde logo porque nem para nós, alentejanos, é consensual a definição de “chaparro”.

PRESERVAR A IDENTIDADE

Luís Miguel Ricardo diz que a sua demanda está “aberta a novas pesquisas e a novas atualizações”, num projeto que visa contribuir para a “preservação da identidade” regional e para “proteger” palavras e expressões “das investidas aglutinadoras do fenómeno da globalização cultural”.

A verdade, garante, é que os falares regionais do Alentejo “ainda cirandam em redor de um balcão de copos e de petiscos”, “ainda resistem à globalização”, ou seja, “ainda se usam”. O problema está no “ainda” e no risco real de virem a desaparecer. “Por vergonha ou por desapego, as novas gerações não lhe conhecem a essência, não lhe identificam o vocabulário, não se entendem com as expressões. Resta o sotaque. Mas o sotaque é a sonoridade, não é a essência”, refere o autor, sublinhando que “a essência são as palavras originais, aquelas para as quais não encontramos semelhanças no linguarejar do português corrente”.

Dito de outro modo, “a essência” a que Luís Miguel Ricardo se refere “são as palavras mal ditas, as corruptelas, que resultam da ausência da imagem gráfica (analfabetismo) e da reprodução exclusivamente pelo som que parece mais próximo da palavra autêntica. A essência são as expressões que só encontram sentido no seu contexto específico e que quando saem da geografia que as viu nascer perdem o sumo, perdem a lógica da utilidade”.

Por entre as palavras que viajam, cá as encontramos, “pelengana” pode ser um bom exemplo. Utilizada quase exclusivamente na Margem Esquerda do Guadiana, mais concretamente em Vale de Vargo (Serpa) para definir uma tigela de barro ou um prato fundo, aqui chegou e daqui partiu.

“As palavras”, assegura o investigador, “mesmo sendo consideradas regionais, vinculadas ou usadas com mais frequência em determinadas zonas do território, não podem ser aprisionadas a um espaço e a um tempo. As palavras viajam com os seus falantes”.

Neste caso, será preciso percorrer algu- mas centenas de quilómetros para encontrar a sua origem… na Catalunha. Tendo cruzado o Guadiana, chegou ao litoral alentejano: junto ao Parque de Campismo de São Torpes, em Sines, a Praia da Pelengana é um dos mais procurados refúgios de verão.

A obra contém um “dicionário de falares” com cerca de seis mil significados, a que se somam uns 400 “ditarenhos” (ditos tradicionais), como este: “Enfiados num cordel, dão a volta daqui a Bencatel”, diz-se lá para os lados de Redondo, enquanto na Vidigueira a expressão assume outros contornos: “Enfiados num cordel, dão a volta daqui a Portel”. 

Já se sabe, claro, que “lua com circo e estrelas dentro, ou chuva ou vento”. Mas como o tempo é de seca, o ideal seria cair uma tão grande “pilharca de água” que permitisse aos burros beberem “dempei”. Fora do contexto agrícola, ou talvez não, é do senso comum que “boi em terra alheia, qualquer vaca o encorneia”

“PÔR A SALVO OS REGIONALISMOS”

Autor do prefácio da quarta edição de “Falares e Ditarenhos do Alentejo”, o professor universitário Galopim de Carvalho diz que o trabalho de Luís Miguel Ricardo contribui para “pôr a salvo” os regionalismos alentejanos, “ainda guardados na mente dos seus idosos”, que correm o risco de se “perder”. Lembra Galopim de Carvalho que “certas palavras e expressões verbais que hoje se dizem, escrevem e figuram no léxico oficial da língua portuguesa, foram trazidas dos linguajares [alentejanos]”, enquanto “muitas outras e em número bem maior, não tiveram esse privilégio”, ficando “confinadas no falar desta população de Aquém Tejo, como parte de uma cultura linguística herdada e moldada ao longo do tempo”.

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