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Rui Arimateia: “A busca do Natal perdido”

Fizemos do Natal sinónimo de consumo, corporalizado pelo frenesim das compras e das trocas de prendas, passando-o em lautos banquetes… e esquecendo que a Consoada é sinónimo de um jejum específico de uma festa muito particular.

Rui Arimateia (texto)

Segundo tradições ancestrais, os cristãos celebram, por alturas do solstício de inverno, a festa chamada da Natividade ou do Natal, para comemorarem o nascimento de Jesus – o Cristo, o Salvador do Mundo. É uma festa cíclica de carácter religioso, marcada no e pelo calendário tradicional que celebra a passagem do sol pelo solstício de inverno. Festa que sofreu diversificadas evoluções ao longo dos milénios, consoante os povos e as mentalidades que dela se apropriavam culturalmente.

Em Portugal, tempos houve em que se acendiam madeiros nos adros das igrejas – local sagrado e de culto do deus solar, pois Cristo está por demais identificado com o próprio sol… Mas são tempos passados, resistindo, esporadicamente, tão só uma ou outra reminiscência destes atos verdadeiramente comunitários, pois a lenha ou o madeiro era transportado para o local do sacrifício por todos os vizinhos num espírito verdadeiramente comunitário e de partilha.

Note-se, desde já, o sincretismo religioso evidente nestas tradições ligadas ao calendário tradicional das festas natalícias, onde se conseguem identificar resquícios de manifestações das religiões da antiga Roma que, por sua vez, foram influenciadas por outras tradições religiosas milenares.

Hoje em dia, a preocupação real da generalidade das pessoas está direcionada para o consumismo que tão bem caracteriza a nossa sociedade moderna, livre e ocidental … O Natal – totalmente profanizado, no sentido de ter sido esvaziado dos conteúdos que nos são oferecidos pelo mito cosmogónico e pelo Menino Jesus, símbolo de pureza e de pobreza, de partilha e de amor –, o Natal, repito, fizemo-lo sinónimo de consumo, corporalizado pelo frenesim das compras das vésperas e das trocas de prendas, passando-o em lautos banquetes… e esquecendo que a consoada é sinónimo de um jejum específico de uma festa muito particular. Pré-nascimento e nascimento caracterizados respetivamente pela consoada e pela ceia de Natal.

Mas, poderemos nós questionar, que significado terá, hoje em dia, o presépio e todo o restante simbolismo do Natal? Qual o modo, pelo qual, o Homem vive essa realidade e essa época festiva? Encontrar-se-á atento à mensagem subjacente, às perenes e inefáveis realidades transmitidas!? E os pais-natais meio apalhaçados personificando símbolos de puro consumismo, e realidades antipedagógicas porque alienantes, quais os seus papéis na dramatização espiritual do Natal e do presépio?

Poderemos então, mais uma vez, perguntarmo-nos: e o que resta para o outro? – As prendas oferecemo-las a nós próprios, nos banquetes devoramos muito mais do que o razoável, para não dizer do que necessitamos… E o outro? E os outros? E os milhões e milhões de outros que neste preciso momento necessitam desesperadamente nem que seja de umas pitadas daquele espírito de Natal que sabemos qual é, mas que não temos a coragem, nem a sensibilidade, nem a disponibilidade de assumir porque estamos demasiadamente ocupados em olhar o nosso umbigo… ao invés de escutarmos o coração e de praticarmos o ato da dádiva?!…

O espírito do Natal, através das suas muitas e diversas manifestações tradicionais, da aldeia ou da cidade – o presépio, o madeiro, a Missa do Galo, a consoada e a missadura –, só fará humanamente sentido se estiver consolidado com valores autenticamente fraternais onde a partilha e a disponibilidade prevaleçam e o humano se torne mais solar, mais divino…

Por analogia, o Natal representa simbolicamente a tentativa do homem se renovar, se purificar, renascer anualmente, ciclicamente. Isto é, representando, festejando o nascimento do Homem novo e, em última análise, a renovação da humanidade através do nascimento de uma criança, símbolo da inocência, da inofensividade, da tolerância.

TRADIÇÕES NA REGIÃO DE ÉVORA

Apesar da “normalização” das tradições nos tempos que correm, as memórias das antigas tradições desta quadra festiva ainda dinamizam algumas práticas peculiares, tais como:

– A presença lúdica do presépio com figurinhas de barro, que tradicionalmente era costume as famílias visitarem em algumas igrejas da cidade. Embora não dispensasse a sua construção nas próprias casas;

– Ainda em algumas aldeias do Alentejo – embora seja um costume de cariz comunitário hoje praticamente inexistente – os vizinhos juntam grande quantidade de lenha normalmente no adro da igreja paroquial, acompanhada por um grande madeiro, que fazem arder durante toda a noite de Natal, aí convivendo. Em algumas residências queimava-se igualmente um grande madeiro na lareira. Os restos do madeiro de Natal guardavam-se para posteriormente acender quando fizesse trovoadas, diz-se, como proteção;

– Ainda em algumas igrejas paroquiais da cidade se celebra a Missa do Galo, por volta da meia-noite. Era muito concorrida a de S. Francisco devido ao facto de se iniciar a cerimónia com a enorme nave iluminada por pequenas lamparinas de azeite, provocando um efeito estético deslumbrante;

– É tradição comum a chamada consoada: reunião familiar após a Missa do Galo, ou por volta da meia-noite do dia 24 de dezembro, em que as pessoas se juntam para cear, consistindo tradicionalmente a ceia de Natal de diversas iguarias: peru assado, bacalhau cozido com couves, linguiça e febras de porco assadas, filhós, rabanadas, sonhos, nogado e arroz doce. A quantidade e a qualidade das iguarias da ceia correspondiam proporcionalmente às disponibilidades e às bolsas de cada família.

– Após a ceia, e antes de irem dormir, as crianças iam colocar o sapatinho ou a meia à chaminé para que o Menino Jesus durante a noite viesse colocar as prendas. É pena que as “lógicas” modernas dos pais natais consumistas tenham destronado este costume tão simples e poético;

– Ainda ligadas com a quadra festiva, cantavam-se, principalmente nas aldeias e bairros limítrofes da cidade, com características mais rurais, as Janeiras e os Reis.

NATAL E INFÂNCIA DE MÃOS DADAS

O significado do Natal para mim, e desde que me lembro, está conotado com alegria, com festa, com brincadeira, com as broinhas de mel da avó, com a apanha do musgo, o presépio e o sapatinho para os presentes do Menino Jesus… E eram prendas frugais: de um ou dois chocolatinhos “Regina”, uns rebuçados e um brinquedo, por vezes roupa nova para estrear ou no dia de Natal ou pelo Ano Novo.

A festa do Natal está conotada com muitos factos e pessoas que deixaram de estar à minha volta para se instalarem dentro de mim… nas minhas memórias, no mais profundo do meu sentir. Através da minha memória vou ciclicamente buscar e brincar com a minha infância e com os faz-de-conta, com todos aqueles que vivi e partilhei, e que é uma delícia recordar de quando em vez!

Ficção ou crença, poesia ou simplesmente tempo de partilha, é importante o espírito do Natal, que no fundo é a vivência do espírito de dádiva e de disponibilidade da criança que fomos… e que nunca a deixemos morrer em nós!

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