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Recuperar telas históricas. Eis a missão de Helena Loermans

Ana Luísa Delgado texto

No seu Lab O, Helena Loermans, uma holandesa radicada em Odemira, dedica-se a analisar as telas em que foram pintadas algumas das obras primas dos séculos XVI e XVII. Pelo seu laboratório passam imagens de raio x provenientes dos mais importantes museus internacionais.

Primeiro foram as férias. Há 34 anos. Helena Loermans diz que foi a luz que a atraiu a Portugal. “Atrai-me a luminosidade e a simpatia do povo português que encontrei no Alentejo”. Embora, de verdade, nesse primeiro momento, numa altura em que não falava a língua portuguesa, talvez tenha sido mesmo a luz do litoral alentejano a prender-lhe a atenção. “Há caminhos que não se conseguem explicar. No Alentejo o calor é mais quente, o frio é mais frio, o vento é mais forte e a luz… bem, a luz, também ela, é mais intensa”, refere.

“Quando saímos de um país do Norte da Europa”, garante Helena Loermans, nascida na Holanda, um país “cinzento, com muito barulho e muita confusão, queremos fugir para um monte, sem nada, até sem vizinhos às vezes. Ter uma horta… criar animais. É uma espécie de sonho. Um refúgio, idêntico ao que as pessoas procuram quando, por exemplo, ‘fogem’ de Lisboa”.

No seu caso, “precisava de luz” e de espaço. “Não queria ter as nuvens logo por cima de mim”. Por isso, escolheu o Alentejo, e não a Serra da Estrela, onde por acaso até existe uma tradição secular da tecelagem e do uso da lã – o que, como veremos, não é pormenor de somenos de importância – para se instalar. “Precisava deste espaço, deste horizonte que encontrei no Litoral Alentejano”.

Instalou-se em Odemira – que descreve como “an idyllic white town [uma idílica vila branca]” – em 1988 e, em 2017, criou o Lab O. Trata-se de um laboratório para telas tecidas à mão, onde tem vindo a desenvolver uma investigação sobre as telas usadas pelos mestres pintores nos séculos XVI e XVII.

“É aqui que tenho o meu atelier de tecelagem. Uma das maiores decisões da minha vida foi lembrar-me, aos 47 anos, que gostava de voltar para a escola. Voltei para a escola, em Florença. Quando lá estava, achei que toda a gente deveria voltar à escola, mais cedo ou mais tarde. Para isso seriam precisos formadores, professores. Tornei-me uma”.

Helena começou a sua carreia como técnica e investigadora de Histologia Química, também denominada como Anatomia Microscópica, no fundo, um ramo da Biologia que estuda a estrutura microscópica e as funções das células, tecidos e órgãos que compõem os organismos animais e vegetais. Sendo autodidata em tecelagem manual desde 1975, foi em Florença, da Fundação Lisio, que desenvolveu estudos no domínio dos teares Jacquard [Joseph Marie Jacquard inventou o mecanismo de padronização de estampas em 1804, tendo construído um tear totalmente automatizado].

Primeiro pensou abrir uma escola de arte têxtil no concelho de Odemira, talvez num dos diversos edifícios escolares entretanto abandonados, o que não aconteceu. Depois, lembrou-se que talvez não fosse má ideia tirar a carta de camionista e organizar uma escola itinerante a partir da qual, em diversos locais do país, poderia ensinar os segredos da tecelagem. Mas isso também não aconteceu. “Fiquei com uma carrinha, onde coloquei todos os teares e com a qual viajei por Portugal, durante 10 anos, a dar formação. Usei um mapa, em papel, para viajar e anotar os sítios por onde passei. Na maior parte dos locais dei cursos em associações, ou ligados ao IEFP ou a outras entidades. Eram cursos de formação para mulheres desempregadas de longa duração e pessoas com mobilidade reduzida”. Até que, por fim, decidiu fixar-se, de vez, em Odemira, onde abriu o Lab O, na Rua Alexandre Herculano, visitável através de marcação prévia.

E de que falamos, quando falamos da arte de Helena Loermans?  Bom, em primeiro lugar trabalha com teares manuais, mais complexos do que os teares onde são feitos os tecidos tradicionais. Mas a grande missão do laboratório, a sua grande missão, é outra. “A nossa missão é a recuperação dos desenhos técnicos destes padrões, do maior número de possível de pinturas… e divulgá-los. Neste momento só estou a ver algumas pinturas dos séculos XVI e XVII e também a fazer análises dos fragmentos de tecidos que estão nos arquivos de museus internacionais, como o The Metropolitan Museum of Art [em Nova Iorque] ou o Victoria and Albert Museum [Londres]. E alguns deles têm padrões idênticos com essas telas”, explica.

Na página de Internet do laboratório surgem, “decifradas”, várias pinturas. Como o retrato de Isabella d’Este, uma das personagens mais fascinantes da Renascença italiana, pintado por Ticiano entre 1534 e 1536 e atualmente à guarda do The Kunsthistorisches Museum of Vienna, ou o magnífico “Descanso na Fuga para o Egipto”, um óleo sobre tela considerado como a primeira obra em grande escala feita por Caravaggio por volta de 1597. Ou ainda, datada do mesmo período, a tela “São Martinho e o Mendigo”, pintada por El Greco. Todas elas analisadas com recurso a imagens de raio x.

No Lab O, Helena Loermans dedica-se a recuperar e partilhar o conhecimento de telas históricas, recorrendo à sua longa experiência como tecelã e como professora e tutora de tecelagem em vários projetos financiados por fundos europeus para o desenvolvimento rural ou visando a inserção.

“Vou decifrar o mais que possível os padrões diferentes. Antes de ser tecedeira era analista médica e trabalhava numa investigação sobre tecidos humanos. Não é uma atividade assim tão diferente. Aqui visualizamos as texturas e [procuramos formas para] recuperá-las. A missão do Lab O é a recuperação destes desenhos técnicos, destes padrões, destas pinturas. Recuperá-los e divulgá-los…. fazer análises de fragmentos de tecidos provenientes dos mais variados museus internacionais e alguns deles com padrões idênticos”.

A técnica parte das imagens de raios x utilizadas pelos especialistas em restauro e conservação de obras de artes. A partir daqui, com recurso a uma “tecnologia nova”, Helena Loermans consegue “visualizar e analisar” a composição da própria tela. “Vou ‘em cima’ dos fios, de todos eles, para poder fazer um desenho técnico que contenha toda a informação” sobre os tecidos que serviram de suporte às obras de arte. O seu trabalho, revela, tem sido alvo de atenção em colóquios e simpósios internacionais, tanto da parte da artesãos, como de empreendedores ou estudiosos da história de arte.

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