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Peregrinação por catedrais de Vila de Frades

Há dois mil anos que a tradição de mantém: vinho feito em talhas de barro, num processo que será candidatado a Património da Humanidade. A tradição salvou-se. A procura é cada vez mais.

Luís Godinho (texto)

“Assim aparadinho é que se deve provar, está no ponto”. São seis e meia da tarde, vésperas de São Martinho, e na Adega Luís Amado, em Vila de Frades, o vinho branco corre em bica das talhas de barro. Lá o iremos provar, “aparadinho”. Por esta altura, na Rua do Lavadouro, a mulher e a filha de António Ruivo ultimam a caldeirada de cachaço de porco com pimentos que haverá de cozer em tacho de barro preto. Quem não conhece a moda talvez não saiba que Vila de Frades “já não tem abades/ mas tem adegas que são catedrais”. Sabendo-o, pode seguir connosco nesta peregrinação que começou um pouco mais cedo, na Adega do José Galante.

“O ano foi belíssimo e a procura tem sido cada vez maior. Estamos unidos e a lutar por este património único que é o vinho da talha”, confidencia José Galante, ex-inspetor da Polícia Judiciária, que voltou às origens para se tornar produtor. Produtor de vinho, nem tanto de uvas. “Tenho três pequenas parcelas, não sou agricultor, não sou homem do campo, pelo que compro a maior parte da uvas, escolho as que quero e isso facilita na feitura do vinho”.

Este ano fez 11 talhas, tendo reduzido ligeiramente a produção. “Reduzi um bocadinho a quantidade, mas se calhar errei pois agora parece-me que a procura vai continuar a crescer e a qualidade do vinho também melhorou”. A conversa decorre por entre a azáfama de quem tem de preparar o espaço para receber um grande grupo de visitantes no dia seguinte, interessados tanto no vinho como no petisco. “A vantagem de o vinho não chegar para as encomendas é que me deixa um pouco mais liberto, ando aqui num trabalho árduo”, ironiza o antigo polícia, que este ano fez três talhas de palhete, três de branco e cinco de tinto.

A ligação de José Galante ao vinho da talha talvez não fosse óbvia, mas ainda assim não deixa de ser resultado de uma herança cultural ancestral. Os seus avós e bisavós fizeram vinho, mas o caminho foi interrompido. “O meu pai deixou de o fazer e as talhas desapareceram, umas porque foram partidas, outras dadas. O meu pai herdou um armazém de vinho, mas vendeu-o para casar, porque não havia interesse nesta atividade. Nasci nesta casa e nunca vi qualquer talha”.

Deu-se o caso de José Galante ter despertado desde muito novo para a cultura do vinho – “o meu pai levava-me às tabernas, primeiro bebia uma gasosa, depois um copinho” -, ter sentido vontade de fazer o seu próprio vinho, “para compartilhar com os amigos”, e ter um tio que lhe vendeu duas pequenas talhas, que por aqui se chamam tarecos. Nunca mais parou.

Companheiro de peregrinação, Diogo Conqueiro, presidente da Junta de Freguesia de Vila de Frades, recorda que há três décadas o vinho de talha “era uma tradição quase perdida”. Por essa altura haveria não mais de três produtores, hoje são quase 30, incluindo 18 adegas visitáveis e onde se pode comprar vinho. “Houve como que uma espécie de profissionalização do processo

Para a mudança foi fundamental a criação da Vitifrades, “iniciativa de um grupo de rapazes, há 25 anos, sem a qual muito possivelmente esta tradição teria desaparecido”. Hoje a Vitifrades é um dos grandes eventos do Baixo Alentejo, tendo permitido abrir portas à classificação do vinho da talha como Património Imaterial da Unesco, cujo processo se encontra a decorrer. O próprio Diogo Conqueiro é produtor, para consumo próprio e dos amigos. “Foi a Vitifrades que fez renascer os vinhos de talha e, sim, começámos a ser muito mais reconhecidos”, resume José Galante.

Não fica longe a Adega Luís Amado, onde, como vimos, o branco já escorre das talhas para grandes alguidares de barro. Chegou a altura do “aparadinho”, conceito bem diferente do “abaladiço”. É o próprio Luís Amado, produtor e promotor turístico depois de uma longa carreira na política, que explica as diferenças: “O ‘aparadinho’ é quando enchemos o copo diretamente da talha, é toda uma experiência que resume uma herança milenar. Já o ‘abaladiço’ é o último copo que se bebe num determinado contexto”.

Diz Luís Amado que isto de fazer vinhos como os romanos “é uma paixão” que não quis aprender quando lha tentaram incutir: “O meu pai bem tentou, mas eu disse-lhe que era coisa de velhos. Acabou por falecer sem me ensinar”. Aprendeu muito por culpa de um projeto na área do turismo, a que se tem vindo a dedicar. “Temos uma agência de viagens e estando instalados na capital do vinho da talha fazia todo o sentido criar um projeto que atraísse gente a este território. Hoje não me vejo a fazer outra coisa”.

A primeira produção foi há cinco anos. “Isto nunca se sabe tudo… temos a porta aberta, chega um e outro, cada qual faz vinho à sua maneira, e vamos ouvindo os conselhos. Felizmente tem saído sempre bem”, conta o produtor, que este ano fez à volta de três mil litros, apenas branco e tinto, pois não é particularmente apreciador do palhete, de que falamos pela segunda vez e ao qual ainda iremos voltar.

“Tudo na vida é cíclico e a verdade é que o vinha da talha esteve quase morto e, neste momento, a qualidade é muito elevada, as próprias adegas voltaram a ser catedrais e tudo isto está a trazer mais e mais pessoas a Vila de Frades”, sublinha Luís Amado. Entre um copo e outro – “cada talha dá origem a um produto diferente” -, há queijo e enchidos para acompanhar histórias de quem por aqui passa: “Há, por exemplo, quem se surpreenda com a cor mais alaranjada dos brancos, mas o vinho da talha é isto, está em contacto com a ‘mãe’ [películas] até ao fim e sai com uma outra cor. E, depois, provam aquele copo ‘aparadinho’, que não há em mais lado nenhum, e ficam encantados”.

Na Adeguinha do Ribeiro da Vila, a caldeirada está pronta. Sobra a mesa, para início das “hostilidades”, há pão, queijo, azeitonas, enchidos, rábano e… marmelada. “Sabe então pouco bem um pouco de marmelada com vinho da talha”, exclama António Ruivo, que começou a fazer vinho há uns bons 20 anos. “Tenho uma vinha, comecei com os amigos a fazer uns canecos para a malta beber, os mais velhos explicaram como se faz e aqui estamos”.

António Ruivo bebe do branco e do tinto, mas não esconde a preferência pelo palhete. “Normalmente iam-se apanhando uvas brancas, mas havia também algumas tintas, ia tudo para dentro da talha, fermentavam em conjunto e fazia-se o palhete. Fazia-se e faz-se, é o que mais gosto”. Atendendo à cor, também há quem lhe chame petroleiro ou, melhor dizendo, “pitrolêro”.

Herança romana, a verdade é que não existe apenas uma forma de fazer vinho da talha. A Comissão Vitivinícola Regional Alentejana (CVRA) refere que a “maneira mais clássica” foi registada em 1876 pelo agrónomo António Augusto de Aguiar e “não passa por prensa nem lagares fechados, servindo muitas vezes o próprio pavimento das adegas para a pisa e esmagamento da uva”. Com ou sem engaço, a fermentação ocorre no interior das talhas de barro e o vinho está pronto pelo São Martinho.

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