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O próximo momento eleitoral: bric-à-brac ou sistema?

As próximas eleições irão pôr à prova diversos marcos que têm balizado a política portuguesa. Mas só o curso do tempo dirá se mutações de hoje permanecerão. Quem não se lembra do PRD? Silvério da Rocha-Cunha, professor da Universidade de Évora (texto)

1— As próximas eleições de 10 de março têm dupla importância: por um lado, exprimem a soberania popular em termos formais, pois foram convocadas pelo órgão competente, e é uma oportunidade/ dever dos eleitores; por outro, ocorrem num momento de reconfiguração dos sistemas políticos na União Europeia (UE), importando saber se tal reconfiguração corresponde a uma nova estrutura ou se repete conjunturas análogas do passado. Impõe-se, assim, uma reflexão prévia sobre o destino dos sistemas político-partidários ocidentais, na medida em que Portugal é membro da UE.

A existência consolidada de partidos políticos no Ocidente deu-se com a ascensão do liberalismo, desde logo opondo liberais a conservadores, secularizados a tradicionalistas. Depois, por causa do acelerador histórico que foi a Revolução Industrial, surgiram outras tensões, nomeadamente sócio-económicas, que propiciaram o aparecimento de partidos socialistas e comunistas. E, durante praticamente todo o século XX, dominou uma qualquer forma de bipartidarismo, variando em função da história de cada sistema político, normalmente opondo centro/direita a centro/esquerda.

Que exceções houve? Nos países menos industrializados e desenvolvidos (como Portugal) foi mais tardio o aparecimento de partidos de esquerda. E o século XX conheceu, em consequência das sequelas da I Guerra Mundial, uma crise económico-social que ajudou ao surgimento de partidos contra a democracia representativa, com o êxito de ideologias diferenciadas tais como o comunismo, o fascismo, o nazismo e o corporativismo, que fizeram a apologia de valores e princípios que, pensando bem, sempre estiveram presentes na Modernidade Ocidental: os valores tradicionais, a revolta contra a atomização do indivíduo em favor da comunidade, a manutenção de uma sociedade fechada face a valores cosmopolitas, a prevalência do poder sobre a política. Só após 1945 se renovou o bipartidarismo em prol do Estado Social de Direito. Modernidade e contra-modernidade sempre caminharam juntas.

Em Portugal o processo de modernização traduziu-se em três grandes fracassos que historiadores bem sintetizaram: uma fraca industrialização; uma irrealizada sociedade burguesa; uma cultura sem eficácia social. No tempo longo da História estas fases não conseguidas ainda produzem consequências, em especial a produção de um liberalismo débil, de uma elite propensa ao poder, de uma baixa cultura política. Em Portugal dominou mais a contra-modernidade.

2— A dialética que preside à formação e desenvolvimento dos partidos políticos é mais complexa do que se pensa. Os partidos estruturam o mundo político (são faróis para os eleitores, que votam mais na sua existência que nas suas doutrinas), criam líderes, cultivam a cultura política, mobilizam setores da sociedade, gerem o sistema político e recebem dos eleitores aplauso ou reprovação. Por um lado, representam interesses e forças sociais, bem como refletem mutações político-culturais (caso do chamado pós-materialismo político pós-Maio 68); por outro, são reflexo das mobilizações de forças atuantes na sociedade, tais como movimentos sociais e elites. Muito provavelmente a conjunção destas duas vertentes cobre boa parte da veracidade da política. Depois, surgem na equação outros fatores (o sistema eleitoral, por exemplo) que condicionam a vida dos partidos políticos. De todo este bolo de ações e interações nascem picos e crises, como a hegemonia, o clientelismo, a corrupção, as dissen- sões, os partidos mutantes, etc.

A globalização desregulada neoliberal, com tudo o que traz de precário e atomizador, as redes sociais, que facilitam uma comunicação abrupta e sem mediação cultural, a “sociedade do risco” onde surgem ameaças potenciais de todos os lados numa sociedade que, no entanto, acredita no progresso infinito, linear e endeusa a tecnociência, têm produzido sistemas políticos fragmentários e voláteis, para além de um pessimismo de fundo. Portugal tem vindo, tardiamente, a acompanhar esta tendência europeia.

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As próximas eleições irão pôr à prova diversos marcos que têm balizado a política portuguesa. Mas só o curso do tempo dirá se mutações de hoje permanecerão. Quem não se lembra do PRD?

Em primeiro lugar, pode estar em causa o sistema tendencialmente bipartidário (PS/PSD), que dura des- de o 25 de Abril em termos estruturais. Estes dois partidos têm sido hegemónicos, pois os seus fundadores apostaram na formação de partidos interclassistas, enraizados no território nacional, sociologicamente heterogéneos mas abrangendo em comum a classe média, e europeístas. Como partidos hegemónicos sofrem todas as crises típicas acima referidas. Uma das provas consistirá em saber se os seus discursos fazem diferença para o eleitorado que tem oscilado entre ambos, se conseguem manter a frescura dos respetivos discursos políticos, se os seus líderes terão efetiva influência na escolha dos eleitores. As lideranças tornaram-se decisivas num tempo de comunicação instantânea e simplificadora.

Em segundo lugar, será revelador saber se as propostas dos partidos à esquerda do PS (PCP, Bloco de Esquerda e Livre) serão ouvidas pelo eleitorado, operando um transvase de votos, significando com isso que a cultura política da esquerda permanece mais compacta do que, aparentemente, pareceu nas últimas eleições, onde o PS absorveu boa parte do eleitorado tradicional dessa esquerda.

Em terceiro lugar, será importante ver qual a capacidade de aglutinação do PSD do eleitorado mais à direita. A Iniciativa Liberal será, em teoria, o partido mais débil, pois o seu hipotético liberalismo ainda permanece uma incógnita, seja em termos doutrinários, seja em termos programáticos. Mas é verdade que um sistema político onde pululam slogans propicia mais o voluntarismo e estados de alma do eleitorado que a reflexão frente ao futuro. Quanto ao Chega, é fácil perceber que vai polarizar um eleitorado que sempre existiu (o CDS atingiu mais de 16% dos votos em tempos idos), podendo crescer com o número de eleitores que se sente atingido pelos efeitos da desregulação global, que se sente desencantado com um mundo que surge como perigoso, desordenado, anti-tradicional, que não corresponde ao que é mais caro à mentalidade conservadora: a manutenção de um modo de vida de algum modo certo, seguro e estático. Será este eleitorado sólido ou de simples protesto contra um sistema de que se sente excluído?

Por último, há uma incógnita: a autoconsciência coletiva. Existe em todos os sistemas políticos um imaginário social fundado em alicerces que são, de quando em vez, revolvidos por acidentes de percurso. Para este subterrâneo do imaginário confluem pequenos episódios, obscuridades, detalhes que fazem diferença por entre contradições. A crise da covid-19, por exemplo, trouxe à superfície a interdependência em que vivem os indivíduos nas sociedades complexas, logo, mostrou a importância do Estado numa sociedade onde todos se julgam indivíduos e não cidadãos. Lembrar-se-ão os eleitores da comunhão que se es- tabeleceu entre a maioria dos portugueses aquando do confinamento e da vacinação em massa? Será esta lembrança esbatida pela falta de memória que assola esta sociedade de boatos e ‘fake news’? Também só o tempo o dirá.

O Alentejo. Praticamente ocupando um terço do território, com uns cinco por cento da população do país, é uma região abandonada pela extraordinária, desastrosa e politicamente silenciada macrocefalia do litoral. Só com um círculo eleitoral de compensação proporcional (pois o sistema uninominal é injusto) poderia o Alentejo exibir melhor a representação das forças políticas nele presentes. Mesmo assim a injustiça é mais profunda. Com efeito, produzindo embora boa parte da nossa riqueza, não a sente no território. Isso só mudará quando a cultura política nacional for mais densa e nos emanciparmos do lastro dos nos- sos fracassos históricos passados.

E este é o sempiterno ponto crítico da política portuguesa: queremos um sistema político em forma de bric-à-brac ou um sistema estável e reflexivo?

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