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O porta-a-porta das bibliotecas itinerantes

Percorrem as aldeias e montes, levando os livros. Mas também as notícias e as novidades das vilas e das cidades. Onde chega a carrinha da biblioteca há socialização. E quebra-se o isolamento dos grupos mais frágeis e vulneráveis, ou seja, da população envelhecida.

Júlia Serrão (texto)

Os funcionários das bibliotecas itinerantes continuam a ter uma papel importantíssimo na hora de requisitar os livros, mas a oferta excede a obra literária. O perfil do leitor também é hoje diferente, nos territórios de baixa densidade populacional. Os jovens partiram para estudar nas cidades, e algumas escolas e jardins infantis foram transferidos para a sede de concelho, passando a ser servidas pela biblioteca municipal. “Ficaram os mais velhos e uma população que decidiu vir viver para o interior”, comenta António Bento Ramires, a trabalhar na Biblioteca Itinerante de Redondo, sublinhando uma relação especial, “afetiva, muitíssimo mais próxima” com os primeiros, “que têm a memória, a história dos locais e uma leitura muito própria” dela.

Bento Ramires vem das bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian, que foram um projeto emblemático da instituição. Entrou em 1988. Quando a Fundação extinguiu o serviço em 2002, uma das decisões encontradas foi doar uma parte do arquivo às autarquias e às novas bibliotecas que surgiam, e o bibliotecário “transferiu-se” para a Biblioteca Itinerante que começava a dar os primeiros passos no concelho de Redondo. Passados 20 anos, continua a percorrer muitos quilómetros para levar o livro às populações das aldeias e montes, que se interessam particularmente “pelo romance histórico e por tudo o que está ligado à história dos locais”.

Para atenuar a elevada taxa de iliteracia e “levar” para a biblioteca os que estavam afastados com o argumento de não saber ler, o bibliotecário desenvolve também um projeto de alfabetização, denominado Educação Sénior ES+, que decorre por todo o concelho. Promove a leitura e a escrita, e recolhe estórias orais dos habitantes, um património que considera ser “urgente” imprimir em papel. Talvez com esse objetivo, talvez apenas pela vontade de “fixar” e memória histórica, o bibliotecário já tem dois “caderninhos” compilados, está a trabalhar no terceiro.

AUMENTAR A AUTOESTIMA E PROMOVER A SOCIALIZAÇÃO

Bento Ramires é também é coautor da obra “Homens Livro”, que se define “como apelo à memória individual e coletiva do que foram as bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian”, e que reúne textos e fotografias sobre este serviço de promoção à cultura. Revela ter muitas “histórias felizes” de gente que pôs a ler e a escrever. Conta a da “dona Boavida”: “ ́Tinha muita pena de não saber ler, mas conhecia algumas letras, e tinha uma caligrafia muito bonita”. Começaram a trabalhar. “Ela tinha uma vontade incrível”. Os resultados chegaram, e Boavida começou a requisitar livros. Confessou ao “professor” que “agora” já “não tinha vergonha” de ir com as outras mulheres à vila, onde “lia as placas dos médicos, o folheto do supermercado, e até já aprendera a ler a palavra kiwi”. Ensinar a ler e escrever, refere, também serve para aumentar a autoestima das pessoas. “A biblioteca tem uma função também social, promove a socialização, nunca perdendo de vista o que é o papel do livro”.

No livro são reunidos testemunhos “deliciosos”. Como o de uma moça de São Bento do Cortiço que, nos idos de 1963, assegurava ter conseguido com a biblioteca “um bom desenvolvimento, tanto na leitura como em não sentir tanto acanhamento diante dum qualquer superior”. Eis o livro como desinibidor social. Ou, como mais moderadamente escreve Armando Carmelo, aqui está uma frase que, à época, anunciava “um novo tipo de comportamento social”.

Mais a sul, a Biblioteca Itinerante de Almodôvar existe desde 2006, tendo sido criada dois anos depois da biblioteca municipal. “É o complemento ao serviço da biblioteca fixa na vila, porque as localidades estão muito dispersas por um concelho com uma área de 770 quilómetros quadrados”, observa Anabela Romano, bibliotecária e diretora da biblioteca municipal. Explica que o serviço itinerante é apoiado por uma assistente técnica fixa à carrinha, e mais outra em sistema rotativo que só está presente nos dias em que este equipamento passa pelas escolas.

Durante o período de aulas, o programa dirigido às crianças traduz-se em contar histórias, trabalhando o gosto pelos livros. A carrinha percorre 22 localidades, estacionando ao pé das escolas ou das Juntas de Freguesia, vai aos lares de terceira idade, e nas localidades com mais habitantes estaciona em, pelo menos, três locais. Os leitores, revela, têm preferência “pela poesia, romances históricos, histórias verídicas, e também por alguns policiais”.

GARANTIR A BIBLIOTECA ATRAVÉS DOS CD

Almodôvar tem uma população envelhecida e uma taxa significativa de analfabetismo, mas há uma consciência interessante do papel da biblioteca itinerante, como ilustra o episódio contado por Anabela Romano: “Há uma senhora que não sabe ler e que vai buscar os CD de música… um dia perguntou-nos se sabíamos a razão pela qual vinha à biblioteca, ao nosso encontro. E explicou que era para não deixarmos de vir, pois aquela é uma localidade de fracos leitores”. Anabela sublinha a importância das técnicas no quebrar do isolamento, que é transversal a todo o concelho: “As pessoas estão lá à nossa espera, com os livrinhos na mão. Gostam de conversar, saber as novidades da vila. Precisam de afeto”.

Em Grândola, a Biblioteca Itinerante circula desde 2011. O concelho, com mais de 800 quilómetros quadrados e uma das mais baixas densidades populacionais do país, é consideravelmente ocupado por zonas rurais. A bibliotecária municipal Cristina Bizarro explica que a Biblioteca Itinerante veio “alterar a realidade” das populações mais isoladas que não podiam “aceder aos serviços que a biblioteca fixa fornece”. Desta forma, “o município promove a igualdade de oportunidades no acesso à informação e ao conhecimento, contribuindo para a inclusão social, cultural e digital”. Por outro lado, ajuda a combater “o isolamento de grupos populacionais com níveis de fragilidade e vulnerabilidade mais elevados”.

Os livros mais procurados pelos adultos são os romances e contos, biografias, livros de história e títulos sobre tradições populares. As crianças e os jovens, esses, leem sobretudo romances e contos. A responsável pelo serviço itinerante lê e conta histórias às crianças durante todo o ano. No período de férias escolares, estas atividades realizam-se exclusivamente “nos núcleos populacionais onde existe um maior número de crianças”, nomeadamente, os que possuem atividades de tempos livres, permitindo “momentos de convívio e de animação” e dando espaço à socialização. Ana Cristina Bizarro assegura que o livro impresso “continua a fascinar muito” os meninos e meninas da era digital, o que pode ser comprovado pela significativa aderência deste grupo ao serviço e pelo número de livros que todos os anos são requisitados.

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