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“O meu avô foi uma enorme fonte de inspiração”

Entrevista com Rita Nabeiro, um ano depois da comoção que varreu o país na sequência da morte do fundador da Delta. Eis Rui Nabeiro, recordado pela neta. Ana Luísa Delgado (texto)

Passado um ano sobre a morte do seu avô, o que é que retém e como interpreta a comoção generalizada que tomou conta do país nessa altura?

Foi tudo tão rápido e, independentemente destas coisas poderem ser expectáveis, nós sabíamos que o meu avô era uma pessoa muito acarinhada de forma global, a nível nacional, mas eu usei uma ex- pressão na altura que tinha a ver com “uma avalanche de amor”. E foi precisamente isso que na altura sentimos, porque recebemos muitas, muitas mensagens… foram milhares as pessoas que acabaram por se juntar à última despedida, que foi no dia 21 de março, em Campo Maior, e isso só demonstra o carinho que as pessoas sentiam pelo meu avô. Recebemos mensagens de várias partes do mundo e demonstrações desse carinho, até através de obras de arte, canções, músicas, palavras escritas. Foi tudo muito comovente, e a saudade é muita.

O que é que mudou na vida da empresa?

Do ponto de vista operacional, houve obviamente algumas mudanças porque o meu avô, independentemente de ter uma posição de ‘chairman’, mantinha alguma atividade na empresa, ainda que esta já funcionasse de forma independente, porque foi-se profissionalizando com o passar dos anos, também tínhamos formalizado um conselho de administração… bom, demos os passos importantes para essa transição ainda antes de tudo isto acontecer. Houve um choque, não do ponto de vista da operação, mas porque partiu o fundador da Delta, uma personalidade icónica e acarinhada dentro da empresa e no nosso país. Tivemos de fazer algumas alterações, até por imperativos legais, mas as pessoas também sentiram que era importante continuar a fazer aquilo que ele sempre nos pediu, ou seja, caminharmos para a frente. Ele usava esta expressão do “ir para a frente” constantemente e é isso que eu acho que todos de alguma maneira temos estado a fazer e que continuamos a fazer.

A herança de Rui Nabeiro continua presente?

Em vez de herança, eu diria um legado. Um legado muito precioso deixado por alguém, como ele, que teve uma história real de vida extraordinária, na forma como construiu a empresa, também no local onde o fez. É uma história que continuará a ser muito inspiradora. Nós usamos uma expressão que diz que “na origem encontramos o futuro”. É importante continuarmos a trabalhar para construir o futuro, mas obviamente é muito importante saber de onde vimos, quais são as nossas origens, não perder aquilo que é o nosso percurso, que são as nossas raízes, é o que nos dá sustentação. Mas também continuar a sonhar, continuar a inovar. Quando se tem uma história tão rica, quando se tem um exemplo tão inspirador como o dele, seria um desperdício enorme não relembrar os valores humanos nos domínios de trabalho, da atitude, da dedicação, da humildade, da proximidade… e posso continuar aqui com os adjetivos que ele nos passava, não porque os dizia ou apregoava, mas porque o fazia numa base diária e isso não se esquece. Agora é preciso dar continuidade, reinventar outras coisas, mas esse é o papel de quem vem a seguir.

No caso da Rita, que está mais ligada ao setor dos vinhos, que projetos foram desenvolvidos neste último ano?

Demos continuidade a muitas das coisas que já estavam em plano, demos sequência a esse trabalho. Um dos projetos que avançou já estava a ser trabalhado há quatro anos, foi o lançamento do Amálias, um vinho comemorativo do centenário da Amália Rodrigues feito em parceria com sete produtoras de vinho. Ainda em 2023 acabámos por lançar as sementes para aquilo que queremos que seja um vinho de homenagem ao meu avô, vamos ver o que é que vai sair… além disso, estamos a dar continuidade ao que são as gamas biológicas, dentro da transição que estamos a fazer para uma produção biológica nas nossas vinhas. Uma já está totalmente convertida, numa componente ambiental da atividade que queremos reforçar. Como dizia, não há propriamente algo que tenha mudado ou que se tenha transformado radicalmente, há sim uma ainda maior responsabilidade.

Como é que, tendo estudado Belas-Artes, foi parar a gestora de uma marca de vinhos?

Estudei efetivamente Belas-Artes, mas antes decidi ir para o curso de Design e Comunicação. Na verdade, tinha pensado em Arquitetura, sempre gostei muito dessa área, mas decidi ir por outro caminho. Estava a trabalhar numa agência criativa quando surgiu o projeto da Adega Mayor e tomei a liberdade de querer propor em meio de criação uma identidade para a marca. Entrei por essa porta no negócio familiar. Depois, a gestão surgiu de forma natural, tive de aprender, fui estudar, fui viajar, fui bater a várias portas, em alguns países diferentes, visitar vários produtores. Ainda hoje aprendo muita coisa.

Quais foram os principais ensinamentos que recebeu do seu avô?

O meu avô era uma daquelas pessoas sábias, que aprendeu fazendo e nós também aprendíamos ao ver o exemplo que ele nos dava. Um dos maiores ensinamentos foi a proximidade, estava junto das pessoas, muito próximo dos seus clientes, viajava por todo o país. Por outro lado, essa proximidade estava ligada a uma grande disponibilidade, ou seja, o meu avô sabia escutar, era alguém que estava atento ao mundo e que estava constantemente a tentar procurar formas de inovar o negócio. Hoje em dia, no meio empresarial, já se fala muito do bem-estar nas organizações, mas ele já o praticava há muito tempo, muito antes de se escrever sobre isso. Tinha essa proximidade, disponibilidade, essa atenção ao outro, mas depois também era uma pessoa que liderava e que tinha um forte sentido de comunidade.

Particularmente em relação a CampoMaior.

Mas não só em relação a Campo Maior, ao seu Alentejo… o meu avô vestia essa camisola e era um apaixonado pela sua terra, pelas suas gentes e por isso queria devolver aquilo que recebeu. Nasceu numa família com muitas carências e conseguiu conquistar o que conquistou, sempre com essa ideia de retribuir aquilo que foi recebendo, através do negócio e mesmo a título pessoal… uma enorme fonte de inspiração. Na altura das despedidas foram inúmeras histórias, milhares de histórias de pessoas que ele tocou individualmente e às vezes com coisas simples, nem apenas do ponto de vista financeiro, uma palavra, fazer uma “ponte”, como eu costumo dizer, tocando um, ele tocou a todos. Ele tinha esse dom especial, de todas as pessoas, de as fazem sentir especiais, de olhar para os problemas e encontrar soluções, e depois o sorriso. O sorriso do meu avô era uma imagem de marca, essa simplicidade, essa alegria de viver, ele tinha uma enorme alegria de viver e de trabalhar, gostava do que fazia e por isso era alguém cujo gosto criava a sua forma de estar na vida e tinha sempre um sorriso, uma palavra para alguém, mesmo quando às vezes, se calhar, não estava nos seus melhores dias.

Posso-lhe pedir que partilhe alguma me- mória com o seu avô?

São tantas! Há aqui uma história que não foi diretamente comigo, mas que posso partilhar. Um colaborador pontual da Adega Mayor teve um acidente, já não estava no horário de trabalho, sofreu um traumatismo grave, com lesões muito graves no cérebro e em risco de vida, e eu recordo a preocupação com que o meu avô ficou… era uma rapaz com cerca de 20 anos, estava a ajudar os pais no trabalho da vindima, para levar mais algum rendimento para casa. Lembro-me de o meu avô ir regularmente ver este rapaz ao hospital, eu própria o acompanhei nalgumas ocasiões, e quando ele, felizmente, recuperou, arranjou-lhe trabalho. Foi grande a minha surpresa quando no dia do velório reencontrei este rapaz, que entretanto já não estava connosco pois decidiu criar um negócio por conta própria. Lá está, poderia ter mandado alguém da empresa ao hospital, mas foi ele próprio e isto toca qualquer um e acho que esta história é muito emblemática do tipo de pessoa que ele era. O meu avô não falhava, sempre que falecia alguém em Campo Maior ele ia prestar os seus sentimentos à família, sempre. Mesmo na fase final de vida teve esse cuidado de ir dar uma palavra, de estar presente, era incrível. E era assim para os colaboradores, para os clientes, para com a criança que nasce… fossem figuras de Estado ou pessoas mais comuns.

Foi um mentor para si?

Foi um mentor, foi uma inspiração. Porque os mentores não nos vêm dizer para fazer as coisas de uma determinado forma, o mentor é aquela pessoa que nos faz refletir, que nos coloca perguntas, que nos questiona se o caminho é mesmo aquele, se não deveremos pensar um pouco melhor. Ele teve um peso enorme na minha decisão de entrar para o negócio familiar, já nessa altura era uma figura muito inspiradora, mas nos últimos anos acho que ainda se tornou mais relevante na sociedade. Tive a opor- tunidade de aprender muito com ele. Era uma pessoa extremamente exigente, mas também aprendíamos muito com ele através do exemplo que víamos no dia a dia, das pequenas coisas, da forma de ver esse lado muito humano de gerir. É algo que eu espero que permaneça comigo e, se possível, que eu até possa vir a reforçar. Sem esquecer o rigor, com muita atenção aqui ao negócio, com a visão daquilo que nos rodeia, às tendências, à visão do mundo até do ponto de vista politico, porque ele também foi uma pessoa atenta ao mundo, atenta aos outros, atenta à sociedade.

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