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José A. Saraiva: “O Alentejo permite-me ter paz para escrever”

Alexandre de Barahona (texto) e Gonçalo Figueiredo (fotografia)

Diretor do “Expresso” durante mais de 20 anos, fundador e diretor do “Sol” nos primeiros anos deste semanário, José António Saraiva encontrou em Estremoz um “refúgio” que lhe permite fazer o que mais gosta: escrever. “O Alentejo permite-me isso, ter uma paz, não apenas física, mas também de espírito, que em Lisboa não se consegue ter”, diz o jornalista e escritor.

Há cerca de 30 anos que um dos maiores nomes do jornalismo português se recolhe no Alentejo, nos arredores de Estremoz, para fugir ao rebuliço das redações lisboetas e encontrar a paz para escrever. Sem ligações familiares nem afetivas à região alentejana, José António Saraiva veio nos finais da década de 90 do século passado espreitar uma quinta que estava à venda. Ainda não era moda ter um monte no Alentejo, mas veio “espreitar”, na companhia de um amigo. E gostaram tanto, ambos, que imediatamente surgiu a proposta de a comparem juntos. “Havia espaço e casario para tal, ficando até dessa forma mais bem guardado”. Assim foi e é, desde então.

“Eu gosto de estar aqui, no monte”, confidencia José António Saraiva, reconhecendo que a sua esposa apreciaria mais percorrer as planícies da região. “Mas eu gosto mesmo é de estar aqui”. Propósitos destes são típicos das gentes locais, arraigadas à sua terra, ao seu lugar, ariscos a desbravar distâncias, não por comodismo, mas por afeição a um ritmo diferente.

Como é natural, e isso também coincide com os modos de cá, as referências que tem são, muitas delas, gastronómicas. “Adoro ir à Cadeia Quinhentista!”, restaurante no Castelo de Estremoz. “Gosto de ir ao Chana do Bernardino [Aldeia de Serra, Redondo], por exemplo. Olhe, ontem fomos jantar ao Pompílio [S. Vicente, Elvas]”.

As suas pupilas “fulgem” ao rememorar restaurantes, asseverando que é um processo de “alargamento de horizontes”. Mais típico daqui, que isto, é impossível. Não são as razões do facto, mas as emoções do paladar. “Gosto de ir ao Fialho, a Évora… enfim, fomos criando raízes e relações por aqui, sim. Mas o que gosto mesmo é de escrever”.

A cada repetição, ao pronunciar o verbo escrever, escuta-se no seu tom de voz a voluptuosidade de uma carência, uma missão ou melhor, um compromisso consigo mesmo. Prosseguindo: “O Alentejo permite-me isso, ter uma paz, não apenas física, mas também de espírito, que em Lisboa não se consegue ter. Aqui é onde eu tenho realmente o prazer de sentar-me e escrever”.

O JORNALISMO E OS LIVROS

Ora se houve algo que o arquiteto Saraiva fez, foi escrever. Ao longo de toda a sua vida. Antes de ser nomeado diretor do semanário “Expresso”, em 1983, e foi-o incansavelmente até 2005, ainda exercia a arquitetura, mas já escrevia para os jornais. Mas foi apenas em 2015, ao sair da direção do “Sol”, jornal que entretanto havia criado, que deixou vir ao de cima a sua veia literária, escrevendo uma trilogia sobre o Estado Novo, muito bem recebida pela crítica. Antes editara um outro livro sobre a forma como António Oliveira Salazar chegou ao poder. Curiosa estratégia para um escritor, esta de andar “às arrecuas”, como que para trás no tempo.

Neste momento revela estar a escrever um livro sobre o Rei Dom Carlos, labuta sobre a qual diz estar muito entusiasmado. “Era uma figura fascinante, por várias razões, umas boas outras menos, mas fascinante. O seu casamento com Dona Amélia é um período muito interessante da história portuguesa”, sublinha José António Saraiva, acrescentando tratar-se da “passagem de um regime verdadeiramente fechado para a democracia que temos hoje. Embora com múltiplas peripécias pelo meio, como o longo e atribulado período da I República”.

Provoco-o e ri-se: “tem razão, ando para trás no tempo. O primeiro livro chamava-se Do Estado Novo à II República. O livro parte de um artigo que escrevi sobre a extrema-esquerda, no jornal República. Um responsável da Bertrand gostou do que leu e propôs-me a escritura de um livro. O tema do livro, entretanto, mudou. No entanto, a derrocada do regime, o drama do Marcelo Caetano a ver todo um regime a desmoronar em seu redor… achei interessante poder transcrever essa transição do Salazar para o Marcelo e depois para o 25 de Abril”. O livro saiu em finais de 74. Foi nesse período que se deixou aliciar por aquele género de narrativa.

Depois veio a direção do “Expresso”, período durante o qual confessa ter escrito pouco, porque “escrever em redor da História obriga à investigação, e nessa fase eu não tinha tempo”. Mais tarde ergue-se o seu jornal “Sol”, em 2006, em que de novo pelos mesmos condicionalismos se consagra de corpo e alma à escrita jornalística.

Deixando o cargo de diretor do jornal em 2015, pode aspirar em prosseguir o caminho anteriormente começado. “Depois de sair da direção do ‘Sol’, recuei 30 anos e regressei aos temas que me tinham encantado. Andando ainda mais para trás, sim (ri)… do Marcelo ao Salazar, do Salazar à I República”. E agora, da República regressa à Monarquia, ao rei Dom Carlos. “Espero ter tempo, para ainda escrever um livro sobre Dona Maria II e aquela misteriosa morte de Dom Pedro V”, augura José António Saraiva.

Enquanto arquiteto exerceu de 1969 a 1983, até ingressar na liderança do “Expresso”, nunca esquecendo totalmente a arquitetura. Que diz adorar. Reconhece, espontaneamente, não ter oportunidade para voltar a projetar casas, mas mesmo assim continuou o hábito de desenhar. Desenhou algumas alterações na sua residência, ou na de familiares, prolongando-se ao design de peças de mobiliário, como “por exemplo esta mesa diante de nós”, diz, ao apontá-la. É uma pequena mesa de apoio oval, em madeira nobre, de linhas lisas e sofisticação no desdobrar dos pés. Assenta-lhe bem, ser da autoria de J. A. Saraiva. Com 75 anos bem conservados, lesto e arguto, tendo convivido nos salões dos donos políticos disto tudo, de onde não se despediu, troca-os de boa vontade pelo seu monte alentejano, de traços simples, e de bom gosto.

“O desenho dá muita paz, mas a escrita, precisa de muita paz”, diz-me quase murmurando. “A escrita puxa muito por nós, exige muita concentração intelectual, é uma coisa tensa, de muita criatividade. Enquanto o desenho: dá paz. É algo que gostaria de continuar na minha vida, estas duas vertentes da escrita e do desenho”.

“VIMOS SOBRETUDO NO VERÃO”

José António Saraiva diz gostar muito de Lisboa, “onde tenho duas casas, eu encantei-me por uma, mas a minha mulher não quis sair da outra, por isso acabámos por ficar com as duas. Vimos ao Alentejo sobretudo no verão, porque as noites invernais aqui são muito frias! Há pouco tempo instalámos um sistema de aquecimento na casa, e pode ser que agora venhamos mais vezes”. Pois é, quem acredita que o Alentejo se resume à fornaça estival engana-se, o inverno é gélido e agreste, sem as casas estarem preparadas para tal.

Tinha uma dúvida sobre aquilo que o estimularia na escrita, se o lado jornalístico, pesquisando como quem viaja no tempo, ou se seria a evidente costela de historiador que lhe está no sangue. Quis perguntar-lhe. “Há uma mistura. O meu avô e o meu pai eram historiadores. E sou sobrinho de José Hermano Saraiva”, que todos conhecem”.

Contudo, diz abdicar em parte desse trilho familiar, a “história dos factos, das causas e das consequên-cias”, que diz não apreciar. Já a “curiosidade do jornalista, até um pouco indiscreta, de entender as figuras, os seus hábitos… perceber se a rainha Dona Amélia era homossexual ou não, as infidelidades do rei Dom Carlos, apesar do amor autêntico que ele tinha pela mulher, e não era muito correspondido… a história das figuras e a sua articulação com a grande corrente da História, é isto que verdadeiramente me interessa. Por isso acho que se cruza o jornalista com o historiador”.

Torna-se claro, a meus olhos, que José António Saraiva testemunhando por dentro estes 50 anos de um período ímpar da nossa história contemporânea, se interessa por aquilo que leva os políticos a conservarem-se humanos e vice-versa. Indagar como eles respiram, ou transpiram no seio dos seus núcleos íntimos, quando confrontados com os acontecimentos e as personagens públicas que criaram. Confidencia: “A História, quando a conseguimos contar, contando histórias, e não aquele discurso académico, por vezes seco, é fascinante para o leitor”.

“É ENGRAÇADO QUE ME FAÇA ESSA PERGUNTA”…

Pressente-se estar à vontade, entre as colinas do Alentejo. “O Henrique Granadeiro costumava dizer que eu deveria ser nomeado cidadão honorário do Alentejo, mas por adoção, porque não tenho aqui raízes familiares”, confessa o fundador do jornal “Sol” [hoje denominado “Renascer do Sol”, por motivos burocráticos]. E despedimo-nos com a sensação de que aquela quinta alentejana parece ser o seu cantinho no mundo, onde se abriga para escrever. Somente, escrever.

Em jeito de um “até logo”, despede-se anunciando abruptamente algo que poderia ser um furo jornalístico, e me presenteia: “Sabe, no livro que escrevo sobre Dom Carlos… eu estou certo e vou prová-lo, que o regicídio foi ordenado por Afonso Costa”, futuro primeiro-ministro. Mas isto, garante, “tem sido esquecido, tem sido escondido por influência maçónica”. E confiante acena-me com a mão. Se a história lhe está no sangue, então o jornalismo, está-lhe nas guelras.

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