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“Nayola”, a animação alentejana que se tornou filme angolano

Ana Luísa Delgado, texto

É o mais recente trabalho da Praça Filmes, produtora de animação com sede em Montemor-o-Novo. “Nayola” conta 25 anos de guerra civil angolana, numa perspetiva feminina. Trata-se de um filme realizado por JoséMiguel Ribeiro.

Conta o escritor José Eduardo Agualusa ter assistido a Nayola na companhia dos filhos mais velhos, Carlos e Vera, ele com 25, ela com 17 anos. “Somos mesmo nós”, diz a rapariga a determinada altura. “É muito emocionante ver pela primeira vez um filme de animação angolano”.

“Suspeito que a maioria dos ango- lanos sentirão uma emoção semelhante enquanto assistem ao filme. As imagens de Luanda, a voz dos personagens, o seu sotaque e linguagem, e até a forma como estes se movimentam, suscitam imediato reconhecimento: este é, sem dúvida, um filme angolano”, diz Agualusa.

E podemos entendê-lo assim, i.e., como um filme de animação angolano, ainda que saído de uma produtora alentejana, a Praça Filmes, fundada em 2012, em Montemor-o-Novo, por José Miguel Ribeiro e Ana Carina Estróia.

Segundo José Miguel Ribeiro, o realizador, o projeto começou a ganhar forma em 2013 quando leu “A Caixa Preta”, uma peça de teatro escrita a quatro mãos por José Eduardo Agualusa e Mia Couto. “Fiquei sensibilizado com a forma como mostram as consequências de uma recente guerra contra uma família, na perspetiva de três gerações diferentes de mulheres, com os seus segredos, os seus medos e os seus sonhos, e com a forma como a tensão é construída até à revelação final, com um personagem por detrás de uma máscara que não pode tocar o presente”.

Porque a guerra “era apenas uma memória distante”, o autor do argumento, Vergílio Almeida, “criou a viagem” de Nayola, a personagem principal, “através da guerra para o deserto de Namibe, o que acaba por completar a história e expandir a dimensão poética e mágica do filme”

Uma dimensão igualmente sublinhada pelo escritor angolano, para quem o filme “percorre a realidade recente, extremamente dramática, de Angola, deixando que esta se contamine de uma carga poética redentora”. Ainda segundo José Eduardo Agualusa, “alguma coisa dessa carga poética, e do fantástico e maravilhoso, é também parte intrínseca da realidade angolana – embora possa não ser tão percetível a olhos estrangeiros ou a corações menos sensíveis e atentos”.

Filme de animação com 83 mi- nutos, “Nayola” conta a história de três gerações de mulheres, Lelena (a avó), Nayola (a filha) e Yara (a neta),marcadas por 25 anos de guerra civil. Numa narrativa onde passado e presente se “entrecruzam”, Nayola parte em busca do marido, desaparecido no auge da guerra. Estabelecida a paz, sem que nem nenhum dos dois regressem Yara torna-se uma adolescente rebelde e cantora rap subversiva.

Alguma semelhança com Luaty Beirão, o rapper angolano condenado em 2015 a uma pena de prisão, conjuntamente com outros 16 ativistas, não é fruto do acaso. “Influenciado por esse acontecimento, percebi que o nosso filme precisava de integrar essa realidade e que a filha de Nayola, Yara, poderia ser uma rapper exigindo justiça social. Uma nova geração que luta com a música”, revela José Miguel Ribeiro, acrescentando que foi por essa altura que numa plataforma de internet acabou por ir parar a um vídeo de Medusa a jovem rapper angolana que dá voz à personagem de Yara.

Conta o realizador que Medusa “tem a energia, a coragem e a fragilidade” que sentia necessária para o projeto. “Foi quando percebi a urgência, em termos de elenco, para encontrar os outros atores principais. Seis meses depois, em 2019, fomos para Angola trabalhar com eles, sentir o seu ritmo, conhecer as suas histórias, a sua forma de falar, as suas línguas ancestrais, e deixar que toda esta verdade entrasse no filme”. E sim, também deste ponto de vista, ou talvez por ele, “Nayola” será um filme angolano produzido no Alentejo.

“Yara”, conta Vergílio de Almeida, o autor do argumento, “é a personagem que situa o espectador no período de tempo que está a vivenciar”. Ela tem 16 anos. Há 14 que a mãe partiu para a guerra, à procura do marido. “Ao jantar, Yara retoma uma conversa recorrente com a avó, sobre se, um dia, os pais voltarão a casa”. A avó Lelena não acredita que estejam vivos. Afinal de contas, a guerra “acabou há oito anos e doze dias” e se estivessem vivos teriam tido “muito tempo para encontrar o caminho de volta para casa”.

Lembrando que Yara “viveu os oito anos da sua infância em tempo de guerra civil, e os seguintes oito anos da sua adolescência numa paz frágil e num país que se distanciou da utopia pela qual os pais lutaram”, o argumentista sublinha que “a forma como sentimos o tempo é muito variável, às vezes pesa como chumbo ao passar, outras vezes é uma vertigem que já passou, outras, ainda, recriamos nas nossas cabeças um tempo sem idade, que é só nosso e no qual ficamos enredados”. Em “Nayola” surgem “todos estes tempos todos, os reais e os irreais”.

José Miguel Ribeiro revela que o filme envolveu uma longa pesquisa da história e cultura de Angola, incluindo “cinco anos e duas viagens” ao país, indispensável para contar a história “a partir de uma perspetiva feminina”, à semelhança do que foi feito pela escritora Margarida Paredes em “Combater duas Vezes”, livro que reúne testemunhos de mulheres que lutaram na guerra colonial e, depois, na civil.

ENTRE MÁSCARAS E ARTE CONTEMPORÂNEA

“Para os efeitos visuais”, revela o realizador José Miguel Ribeiro, “fomos influenciados pelas máscaras africanas e pela arte contemporânea que nos inspiraram na criação de personagens e de cenários com cores fortes e pincéis ásperos”. Por outro lado, acrescenta, a música angolana “é fundamental no filme, ao colocar-nos nesse período”, com a arte de músicos como David Zé, Mário Rui Silva e o “célebre” Bonga.

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