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Mais de 1500 pessoas em situação de sem-abrigo no Alentejo

O número de pessoas sem-abrigo tem vindo a aumentar por toda a região. São sobretudo migrantes, que deixaram de ter trabalho na agricultura ou no turismo, mas também famílias de classe média-baixa sem condições para suportar os custos da habitação. Ana Luísa Delgado (texto e fotografia)

Manuel tem 36 anos. Nascido em Beja, é uma das cerca de 100 pessoas no concelho de Évora a viver em situação de sem-abrigo. “Só fiz a primeira classe, não sei ler nem escrever, sou analfabeto”. Conta ter começado a trabalhar aos 15 anos, com o pai, umas vezes no campo, outras nas obras. “Era onde havia trabalho, quando nos chamavam, nós íamos”. Por vezes, e não foram poucas, os dias passavam sem nada para fazer.

Garante não ser consumidor de drogas pesadas. Das leves, é outra história. “Fumo sim”. E foi por aí que se meteu em “trabalhos” no Carmo Velho, o bairro problemático da cidade de Beja, onde vivia. “Tive de fugir para não me fazerem mal, pois estava com a cabeça a prémio”. É uma história que envolve tráfico de droga, furto e ameaças. “Queriam que pagasse uns 20 mil euros, queriam fazer-me mal”. Fugiu. Primeiro para Elvas, depois França, finalmente Évora. Revela que quem o ameaçava acabou detido, numa rusga. Deixou de viver em sobressalto. Sobrevive como pode, numa habitação precária, sem eletricidade nem água canalizada. “Arrefece e fica frio. De noite passamos muito frio, as mantas ajudam, outras vezes não, porque o frio entra por debaixo da porta e vem ter com a gente”. Com ele e com a ex-companheira, entenda-se. “Ela ainda apanha mais frio que eu, pois dorme daquele lado”.

A alimentação, diz Manuel, essa é fornecida pela Associação Pão e Paz. Mas há um problema: “Como estão fechados aos sábados e domingos, passamos fome”. Noutras ocasiões é a Cáritas de Évora que ajuda. “Como tenho aqui um fogão a gás, sempre faço algumas refeições. Dão-me atum, salsichas, massas. Vou-me safando”.

A ex-companheira está inscrita na Habévora, empresa municipal de habitação, à espera de uma casa. Ele, que já andou na apanha do pêro e que aprendeu a trabalhar em eletricidade quando o não pagamento de uma multa o levou a fazer trabalho comunitário, está desempregado há mais de seis anos. “Faço uns biscates e aguento-me com o rendimento social de inserção”. Não chega a 190 euros por mês, mas sempre dá para lavar a roupa e comprar alguma comida.

Quando nos encontramos, em pleno centro histórico de cidade, Maria, a ex-companheira, também está presente. “Sim, estou inscrita na Habévora e a lutar por uma casa. O meu sonho é esse. E, sabe, vou ser avó”. Tem 53 anos e um passado repleto de dificuldades. Ao contrário de Manuel, aprendeu a ler, completou o quinto ano. Nascida em Coimbra, foi em Lisboa que encontrou trabalho, primeira na limpeza, depois foi cozinheira. Trabalhava noite e dia. “Andava bem vestida, bem tratadinha, bem arranjadinha”. O marido, 13 anos mais velho, começou a ameaçá-la. “Dizia-me que se tinha matado a primeira mulher, podia matar a segunda”. Confessa ter sido alvo de agressões, físicas e verbais. Acabou por pedir o divórcio. “Era mau”. Ainda viveu uns tempos em casa do filho, na Tábua, trabalhou numa quinta, encontrou outro homem. “Era alcoólico, consumida drogas, pedi ajuda à GNR quando me quis bater”.

Revela ter passado pela Figueira da Foz, antes de rumar a Évora, onde conheceu Manuel. “Vivemos aqui há cinco anos, sem água, luz só a das velas e da lanterna. Tenho de levar a minha vida para a frente”. Para isso, está a fazer um estágio numa unidade hoteleira, suportado pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional. É por lá que almoça. De resto, apenas a ajuda das instituições de apoio social.

Luís Gamito, da Santa Casa da Misericórdia de Évora, coordenador local do Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo, assinala um aumento do número de casos, sobretudo de cidadãos estrangeiros, migrantes, “alguns passantes, muitos outros provenientes de explorações agrícolas, cujos trabalhos sazonais chegaram ao fim, como a vindima ou a apanha da azeitona, e também alguns empregados na hotelaria”. Ainda assim, garante, “na sua maioria são pessoas de nacionalidade portuguesa, muitas deles que residem há anos no concelho, outras que acabaram por ir ficando”.

Segundo refere, o aumento do número de casos está igualmente relacionado com a existência de “mais equipas a trabalhar e de mais projetos direcionados” para estas pessoas, que assim acabam por ter maior visibilidade. “Existe um melhor conhecimento desta realidade”.

Com 62 anos, José é outro dos sem-abrigo a viver em Évora. Nascido na freguesia de Nossa Senhora das Neves, em Beja, começou a trabalhar uma vez concluída a quarta classe. Não teria mais de 12 anos, “Primeiro foi um trabalho, nas obras, depois numa serração em Lisboa, acabei por vir para Évora”. Voltou às obras, mas um acidente de bicicleta trocou-lhe as voltas. Foi-lhe atribuída uma pensão de invalidez, não mais de 300 euros mensais.

“Dá para comprar um comerzito, para os remédios e pouco mais. Lá está, de vez em quando tenho de ir à Pão e Paz e a Misericórdia também me dá de comer”. Habita um monte isolado, sem água, nem luz. Luz nunca teve. “Uso uma candeia, como se fazia antigamente. Não sei se sabe o que é, uma latinha com azeite e uma torcida, é a luz que tenho”. A água, essa, é a que consegue armazenar quando chove ou a que vai buscar a um poço.

“É uma realidade que nos últimos tempos houve um aumento do número de pessoas em condição de sem-abrigo”, resume o provedor da Santa Casa da Misericórdia de Évora, Francisco Lopes Figueira, atribuindo essa circunstância a diversas razões, que não apenas à existência de mais “instrumentos para identificar, localizar e apoiar” essas pessoas. “Nota-se também um fenómeno de rotação de sem-abrigo que estão ora na Área Metropolitana de Lisboa, ora em Évora”.

Estatísticas à parte, a realidade será ainda mais sombria, já que “muita gente em situação de sem-abrigo esconde essa vivência”. De acordo com o provedor, nem sempre os casos são “propriamente visíveis” a quem passa, ou seja, “não são pessoas a viver naquelas tendas, abrigadas naqueles cartões, mas o que é facto é que as pessoas estão efetivamente ou sem-teto ou mesmo sem qualquer possibilidade de aspirar a tê-lo”.

Ainda de acordo com Francisco Lopes Figueira, os migrantes “têm cada vez mais expressão no fenómeno de sem-abrigo”, sobretudo porque “vêm à procura de novas condições de vida e encontram muitas dificuldades de inserção”. No caso dos portugueses, a explicação para o aumento do número de casos não é unívoca, antes resulta de circunstâncias pessoais ou do agravamento das condições sociais e do preço da habitação.

“As pessoas deixaram de ter rendimentos que lhes permitem ter casa. E normalmente esta é uma pobreza e uma situação de sem-abrigo envergonhada, pois as pessoas tentam esconder, ao máximo esse problema”. O provedor da Misericórdia de Évora chama ainda a atenção para o “problema gravíssimo” da habitação em cidades como Évora: “Não há casas, e as poucas casas que de vez em quando vão aparecendo têm preços proibitivos, inacessíveis até a famílias de rendimentos médios e é a partir daí que começam as dificuldades”.

PROBLEMAS EM TODA A REGIÃO

Há mais de 1500 pessoas no Alentejo em situação de sem-abrigo, de acordo com uma análise feita a partir de dados do mais recente Inquérito de Caracterização das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo, cruzados com informação de diferentes estratégias locais de habitação. O concelho de Beja é o mais afetado por esta realidade, com 683 casos identificados, seguido dos de Mourão (188), Vidigueira (113) e Évora (99).

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