Júlia Serrão texto
Fernando José dos Santos Graça começou pelo Algarve, a sua região natal, levantando as lendas dos concelhos que compilou num livro intitulado “Lendas Algarvias”. Seguiu-se “Lendas Alentejanas”, com histórias fantásticas de mouros encantados, tesouros escondidos em palácios e castelos, e amores contrariados. Um mundo de factos reais e históricos que se combinam com outros fantasiosos, para explicar, muitas vezes, “a fundação das cidades e vilas”, durante as conquistas cristãs, e a “sua integração na coroa portuguesa”. Uma obra para todas as idades.
No reinado de D. Afonso V, num lugarejo perto da Vidigueira, vivia um casal de agricultores com a filha. Certa manhã, com fome e sem ter o que comer, a menina insurgiu-se contra a tarefa quotidiana de pastorear o gado, que lhe tinha sido confiada, e só dificilmente cedeu, pondo-se a caminho do campo, chorosa e triste. Durante o percurso, apareceu-lhe “a Virgem Nossa Senhora por cima de um zambujeiro”, que lhe disse para voltar para casa que “iria encontrar uma arca cheia de pão”. Regressando, ela contou à mãe o sucedido e as duas precipitaram-se sobre a arca que, tal como a Nossa Senhora havia dito, estava repleta de pão. Estupefactas, foram chamar a vizinhança, com quem distribuíram o achado. Depois, o grupo acompanhou a criança ao campo para ver a “Senhora que brilhava em cima” da dita árvore. Diz-se que logo denominaram o acontecimento de milagre, sendo que cada pessoa levou um raminho do zambujeiro como relíquia – daí vem o nome de Nossa Senhora das Relíquias, santa muito reverenciada na terra.
Noutro tempo igualmente longínquo, a história de um amor contrariado terminou em tragédia na Corte Gafo, concelho de Mértola. Tudo começou quando uma princesa se perdeu de amores por um camponês pobre que vivia no outro lado do rio Guadiana. Os dois encontravam-se às escondidas, até o rapaz ser descoberto pelo rei, pai da princesa, que o ameaçou castigar “se voltasse a saltar o rio” para namorar. À segunda desobediência, o monarca chamou uma bruxa que lhe lançou o feitiço de o transformar em lobo, se voltasse a prevaricar. Mas o amor falou mais alto, e agora era ver um lobo a saltar o rio para ir ter com a sua amada. Quando o rei soube, reuniu homens e cães e foi no encalço dos amantes que tentavam saltar para a outra margem do Guadiana: a princesa não conseguiu, caindo no desfiladeiro; o camponês pobre, não suportando a dor de a perder, laçou-se no precipício, onde acabou por morrer – metade homem metade lobo.
A primeira é a Lenda do Pão da Vidigueira. A segunda a Lenda do Pulo do Lobo. As duas, com escrita própria do autor, podem ser encontradas no livro “Lendas Alentejanas”. São 47 no total, “a mais expressiva e marcante” de cada concelho do Alentejo, da faixa litoral ao interior do Baixo e Alto Alentejo, com ilustração exclusiva.
TRADIÇÃO DA CULTURA ORAL
“Todas as lendas retratadas neste livro têm um elevado conteúdo textual e significado histórico, independentemente de retratarem histórias fantasiosas de mouros e mourinhos encantados em poços, furnas, cerros, ribeiras, ou de potes cheios de moedas de oiro, de berços dourados e outros tesouros escondidos em palácios ou castelos que, ao longo dos tempos, têm invadido muitas gerações. Ou não estivesse esta região subjugada ao domínio dos árabes durante mais de quatro séculos”, explica Fernando José dos Santos Graça.
Neste cenário, o autor do livro destaca ainda a lenda da moura Salúquia, que explica a origem do nome da cidade de Moura, ou a da Fonte do Mouro, de Beja, e a lenda da Fonte Fausta, de Ferreira do Alentejo. Contudo, diz que uma das “mais marcantes e enigmáticas” é a de S. Pedro das Cabeças, de Castro Verde, por altura da Batalha de Ourique, constituindo a principal lenda épica da história portuguesa, em que a gesta de D. Afonso Henriques, e sob proteção divina, conseguiu derrotar o inimigo muçulmano, alicerçando a identidade nacional. Definidas como combinações de factos reais e históricos com outros fantasiosos, algumas das lendas estão totalmente “ligadas à fundação” das cidades e vilas, por altura das conquistas cristãs da região aos muçulmanos, “e da sua integração na coroa portuguesa”, esclarece. Lembra ainda as produzidas por escribas, que punham em destaque os acontecimentos da época. Apesar de terem sofrido “alterações à medida que são contadas e transmitidas oralmente, através dos tempos por sucessivas gerações, refletem essencialmente as tradições da cultura oral de um povo, incidindo no cruzamento de várias culturas”.
Nascido em Loulé, onde vive, Fernando José dos Santos Graça é jornalista autodidata, tendo colaborado com os jornais desportivos nacionais “Record” e “Gazeta dos Desportos” – como correspondente no Algarve –, com a revista “Foot” e com vários jornais regionais, onde se destacam “A Voz de Loulé”, “Terra de Loulé” e “Distrito de Faro”. Foi diretor dos dois últimos. Apaixonado pela escrita, a história e a cultura local e regional, em 2017, estreou-se na publicação de narrativas de caráter fantástico e ou fictício, com “Lendas Algarvias”. O título resultou de uma parceria previamente firmada com o artista plástico e ilustrador Ricardo Inácio para desenvolver projetos editorias de livros ilustrados. Os dois voltaram a trabalhar juntos para escrever e ilustrar o título “Lendas Alentejanas”, que marca a estreia de Santos Graça “em projetos realizados fora do Algarve”.
ASSOCIAÇÃO A MOMENTOS DE AFETO
No seguimento das lendas originárias do Algarve, nasceu a ideia de reunir as lendas alentejanas para seleção e posterior publicação. A proximidade entre os dois territórios fazia do Alentejo uma escolha praticamente natural, segundo o autor, que acrescenta: “Por outro lado, é uma região que me fascina pelo seu encanto e beleza paisagística, excelente gastronomia e simpatia das suas gentes”. Diz que costuma passar férias e fins de semana prolongados em várias localidades da zona, desde Vila Nova de Milfontes a Marvão, da Mina de São Domingos a Almodôvar (onde a esposa tem parte das raízes) e a Vendas Novas – Santos Graça fez parte do serviço militar nesta cidade do distrito de Évora.
O projeto arrancou em finais de 2018. Conta que a pesquisa, recolha e seleção das lendas se centrou em várias publicações como livros de lendas e tradições culturais, as “Lendas de Portugal”, editadas pelo Círculo dos Leitores, monografias, publicações das câmaras e juntas de freguesia, publicações jornalísticas, e “rede web gráfica”. Também investigou junto de arquivos municipais e do seu próprio repositório. Concluído este processo, desenvolveu os textos, tendo sido preciso resumir muitas das lendas para proporcionar uma leitura mais fácil. Esclarece ainda que todas as fontes consultadas foram escritas, e que por vezes teve necessidade de “confrontar vários textos” para resgatar o mais coerente e fidedigno. “Acima de tudo procurei retratar as lendas na sua forma original, a fim de não beliscar o trabalho desenvolvido pelos seus coletores e autores”, sublinha.
Sempre se interessou pelo mundo das lendas, fossem “produzidas no Algarve” ou “narradas” em qualquer outra zona do país. Por isso, nas viagens e estadias por Portugal, procura reunir toda a informação histórica e cultural das localidades visitadas. “As tradições e as lendas estão na minha grelha de objetivos”. A paixão por este tipo de narrativa acompanha-o desde sempre. Explica a propósito: “Tal como muito outros jovens da minha geração, e nos tempos em que a televisão ainda não estava ao alcance de toda a gente, as lendas e as histórias faziam parte das nossas vivências. Eram contadas pelos nossos pais e avós, nos serões das noites invernosas, à beira das lareiras ou antes de adormecer”. Lembra que muitas eram histórias de encantamentos que os maravilhavam, especialmente pela forma como eram contados. “Hoje, recordam-nos momentos de afetos, de dar largas à imaginação e de sonhos.”
A IMPORTÂNCIA DAS LENDAS NA CULTURA ALENTEJANA
Muita coisa mudou, desde então. Os mais novos consomem muitas horas de televisão e passam mais tempo ainda à frente dos écrans do computador e do telemóvel. Defendendo que os livros “são ainda uma das melhores fontes de consulta e dinamização cultural”, Fernando José dos Santos Graça lembra que as lendas também estão ao alcance destas gerações, conhecidas por serem nativas digitais. “Muitas delas já se podem ler na Internet, em formato digital, se bem que algumas careçam de melhor fiabilidade. Neste contexto, os livros são certamente os melhores veículos para levar as lendas e outras tradições orais às novas gerações”. Por isso, argumenta, é que faz ainda mais sentido o livro “Lendas Alentejanas”, podendo vir “a abrir caminho para outras iniciativas” semelhantes.
Por outro lado, o autor acredita que será um “bom pretexto” para este grupo se interessar mais por estas narrativas, “e passar bons momentos em família ou na escola, assim como desfrutar de todo o nosso património comum, e amar o que de melhor nos foi legado pelos nossos ascendentes”. Fala também na necessidade de “procurar criar laços de afeto com o património e com a história, promovendo a consciência crítica nas gerações mais novas”. O livro propõe-se “contribuir para que essa riquíssima herança cultural e patrimonial perdure nos tempos vindouros”. Explica que, por estarem ligadas ao passado histórico, algumas lendas perduram no tempo. Embora muitas sejam “fantasiadas pelo imaginário popular”, outras enquadram-se no “retrato histórico das cidades e na vivência ocupacional dos povos” que, ao longo dos séculos, transmitiram os seus conhecimentos e ensinamentos às gerações seguintes, enriquecendo “patrimonial e culturalmente” qualquer cidade ou vila.
Santos Graça argumenta que, ao contrário do que se possa pensar, as lendas têm uma importância capital para o Alentejo, região riquíssima em património histórico e cultural. “São um dos mais importantes legados herdados das gerações anteriores que, ao longo do tempo, têm preenchido o imaginário popular. A par dos provérbios, lengalengas, trava-línguas, contos, ditos e dizeres populares, são importantes testemunhos orais que caracterizam um povo e uma região.” Acrescenta que, nesse sentido, “o Alentejo é uma região privilegiada onde o trabalho ao nível patrimonial e identitário se apresenta como fator decisivo de atração de destino, entre outras componentes tradicionais e culturais”. Por esse motivo, conclui que se justifica a edição da sua obra “que, de forma simples e despretensiosa, mas incisiva e marcante, procura dar a conhecer e valorizar este riquíssimo património oral, que não se pode perder”. Imagina-se que o trabalho de Fernando José dos Santos Graça na recuperação das lendas não irá ficar por aqui.
A LENDA DO PULO DO LOBO
Em tempos remotos, vivia na Corte Gafo (Mértola), uma princesa de deslumbrante beleza, que se encontrava às escondidas com um pobre camponês, que habitava no outro lado do Rio Guadiana. Certo dia, o destemido moço foi apanhado pelo rei, que o ameaçou de um severo castigo se ele voltasse a saltar o rio para se encontrar com a sua filha. As ameaças não assustaram o rapaz, que continuou com os seus destemidos saltos. Quando o surpreendeu novamente, o pai da princesa chamou uma bruxa, que lhe lançou um feitiço: -“Se saltares novamente o rio, transformar-te-ás em lobo”. Esta ameaça não impediu que o camponês continuasse a saltar o rio, agora sob a forma de lobo. Quando o progenitor descobriu os secretos encontros, reuniu os seus homens e cães, e saíram em perseguição do desafortunado rapaz, que a jovem não quis abandonar. Tinham fugido os dois na direção do Guadiana, e quando lá chegaram, tentaram saltar para a outra margem. Contudo, a princesa não alcançou o outro lado, caiu no desfiladeiro e desapareceu nas revoltas águas. O rapaz não suportou a dor de perder a sua amada e lançou-se, também, no abismo, onde morreu, meio homem, meio lobo.