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José Duro. O “íntimo trágico” de um poeta esquecido

Luís Godinho texto

É Irene Lisboa, escritora, professora e pedagoga, que se questiona sobre a razão da “frieza” que perseguiu José Duro, tanto por contemporâneos como por quem se lhes seguiu. Não consta que os seus versos fossem “recitados nem homenageados nas revistas literárias”, nem as suas “particularidades líricas” especialmente apreciadas, apesar de a sua obra ter ido “irrompendo por aqui e por ali” através de reedições de “Fel”, ainda que raras, ou de artigos de jornal, mesmo que muito espaçados no tempo.

A explicação para este precoce “esquecimento” poderá estar relacionada com a tragédia pessoal do escritor: a sua obra maior, “Fel”, foi publicada em 1898, quando já se encontrava gravemente doente, morreria poucos dias depois. De resto, foi fugaz a sua passagem por Lisboa. E se acrescentarmos o seu pessimismo mórbido, presente em cada verso do livro, talvez se encontre a explicação para que a sua poesia não fosse um “passatempo” interessante para os salões da burguesia lisboeta de novecentos, ou para comentário nas tertúlias de café.

A voz de José Duro, muitas vezes incompreendida, surge assim como a de um “pessimista, desencantado e pretensamente cáustico”, que “boquejava negros e castigados quadros da existência” humana. “Intimamente era um trágico e, por educação e atitude, um impotente blasfemo”, prossegue Irene Lisboa, em “Perspectiva da literatura portuguesa do século XIX” (Ática, 1947). 

“Parece que nasci só para ver”

Foi o padre António Manuel Mendes quem, a 24 de outubro de 1875, batizou na Sé de Portalegre um rapaz, “exposto no hospício deste concelho” às 10h00 da manhã desse mesmo dia, a quem deu o nome de José António. Registado como “filho de pais incógnitos”, teve como padrinhos José Maria Cardoso, ferrador, e a sua irmã, Maria José, ambos solteiros, e ambos residentes na Rua da Capela, em Portalegre.

A criança foi deixada no hospício vestido com “uma camisa de paninho com pontilha no talho, fralda de paninho, cueiro de baeta de seda branca, uma turca de chita branca com riscas encarnadas, um lenço quadrado branco com a cercadura roxa, tudo bom, excetuando o lenço que é roto”, escreveu a regente da unidade de saúde, Maria do Nascimento Mora, segundo assento transcrito pelo historiador António Ventura em “José Duro – Textos Dispersos” (Colibri, 1999). Batizado o rapaz, seria confiado à guarda de uma ama externa, Maria Custódia, casada com João Vitorino de Bragança, e residentes na zona da Fonte da Devesa, naquela que foi a primeira casa de José Duro, de onde sairia em abril do ano seguinte, depois reconhecido pela sua mãe.

Na escritura de reconhecimento, transcrita pelo mesmo autor a partir do “Livro de Notas do Tabelião Caetano Silvestre de Almeida”, depositado no Arquivo Distrital de Portalegre, Maria d’Assunção Cardoso revela que o rapaz havia nascido a 22 de outubro, sendo filho dela, “no seu estado de solteira”, e de “um homem cujo nome não indica, porém com o qual não tem parentesco nem outro impedimento derimente”. 

Resolvida a questão relativa à identidade da mãe, a do pai era um segredo mal guardado, que ajuda a explicar a decisão inicial da mulher de entregar o filho para adoção. Trabalhadora numa fábrica de lanifícios de Portalegre, Maria d’Assunção havia engravidado de José António Duro, “personalidade conceituada da vida social e económica de Portalegre”. 

“Aqui na cidade natal passou a sua meninice, brincando na estrada em frente à fábrica pequena, frequentando a escola primária paroquial onde aprendeu as primeiras letras”, registou Luís Alves de Sousa Gomes, seu contemporâneo, e que foi administrador do concelho de Portalegre entre 1908 e 1912, num artigo publicado em 1932 em “A Voz Portalegrense”. 

À primária segue-se o liceu. Em junho de 1885, ainda não tinha completado 10 anos, é aprovado no exame de admissão, passando a frequentar o então Liceu Nacional de Portalegre. Daqui segue para a Escola Politécnica, primeiro (1889) no Porto, depois em Lisboa, “onde frequentou aulas de Desenho, Matemática e Física”. Acaba por regressar a Portalegre, “mal sucedido nos estudos”, mas com a descoberta da vocação literária. As suas primeiras publicações na imprensa regional datam de 1893. Assina como J. A. Duro Junior. Restam-lhe cinco anos de vida.

Em 1897 assenta praça do Regimento de Infantaria de Portalegre, sendo depois transferido, a seu pedido, para Lisboa. Cinco anos mais novo, o escritor e político Gustavo Matos de Sequeira acompanhou-o nesse período: “Aparecia no seu andar pausado, o capindó à banda, o barrete acachapado posto um pouco à banda, e os bigodes castanhos, farfalhudos, caracterizando-lhe o rosto macilento onde o nariz arqueava”. Por esta altura já tinha publicado “Flores”, um pequeno livro, apelidado por José Duro como “consagro de alma” e por ele dedicado às irmãs. 

Poeta e desgraçado

“Serás poeta e desgraçado”, escreve Vergílio Ferreira na “Colóquio Letras” (Fundação Gulbenkian, 1993), num ensaio onde vinca a dissonância entre autores como António Nobre, em cuja “Carta a Manuel” é “grandiosa a força com que luta sem um desânimo contra a trágica doença que o venceu”, e José Duro, incapaz de um “autodomínio”, de uma “integração na vida”. A vida da qual José Duro se despede em “Fel”, publicado em finais de 1898. O escritor morre a 18 de janeiro de 1890, vítima de tuberculose. Tinha 23 anos.

“Não conheço exemplo de maior infortúnio”, referirá anos depois o escritor e jornalista Francisco Mayer Garção em “Os Esquecidos” (A Peninsular, 1924), num texto onde descreve o sofrimento de José Duro nas últimas semanas de vida: “Não esquecerei nunca a febre que reluzia nos olhos daquele rapaz, em cujas faces se descortinavam já os estigmas da morte próxima. Sentámo-nos a uma mesa e, com voz rouca, durante longo tempo, eu ouvi a leitura do seu manuscrito, entoada com estranha paixão”. 

Trata-se de um livro assumidamente autobiográfico, no qual o poeta se debate com a perspetiva da sua morte, iminente, com a incerteza sobre a sua valia literária e com a perspetiva imane do que fora a sua vida, abandonado pela mãe à nascença, não reconhecido pelo pai, e onde apenas a avó parece surge como fonte de amor.

Em “Fel”, resumirá José Régio num artigo publicado no jornal “Alto Alentejo” em 1931, José Duro encontra-se “cara a cara com a doença e a dor, sem quimeras nem amparos”, comunicando-nos os seus sonhos e angústias “sem truques e sem astúcias, com uma espontaneidade, um capricho, uma vibração e uma ousadia que lhe marcam um lugar bem seu neste onde país onde – Deus louvado! – os poetas superabundam – é que a fama do seu nome desmentirá a brevidade da sua vida”.

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