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José Domingos Ramalho lança “O Motorista dos Cortes”

Aí está “O Motorista dos Cortes”, segundo livro de José Domingos Ramalho, um olhar acutilante sobre a sociedade alentejana do início do século XX. Será apresentado no próximo dia 9, no Museu Berardo, pelas 15h00.

Ana Luísa Delgado (texto) e Gonçalo Figueiredo (fotografia)

Na pequena igreja de Vera Cruz (Portel), escreve José Domingos Ramalho, “existia um pedaço de madeira que os locais acreditavam ser parte da cruz onde Jesus foi crucificado”. Em “O Motorista dos Cortes”, o seu novo livro, fala-nos sobre os exorcismos “ali praticados”, e sobre quem acreditava “em histórias de homens e mulheres que, de tempos a tempos, chegavam à aldeia com o diabo no corpo, e diziam saírem de lá curados”.

A narrativa remete-nos para o pós I Guerra Mundial. “O dia 21 de agosto, do ano de 1923, tal como a bebé, amanheceu bonito e uma aurora brilhante, predisse a calma e o calor intenso de mais uma tarde de verão, mas no final do dia avistou-se um escuro ao longe e Claudiana murmurou baixinho: – Cheira a terra molhada”. E é sabido que o cheiro a terra molhada é, quase sempre, um mau presságio.

“O Motoristas dos Cortes” é o segundo livro do autor. É lançado depois de “O Ameixa tem uma filha”, obra editada o ano passado. “É uma saga familiar, são registos que eu já tinha escrito há algum tempo e isso tem a ver com a família da minha mãe… são sete mulheres e dois homens, numa narrativa que reflete paisagens alentejanas, pessoas, e acima de tudo a diferença da nossa vida de hoje daquilo que foi a vida no início do século passado”, refere.

José Domingos Ramalho diz que este registo “já estava feito há algum tempo”, sendo que o primeiro livro reúne um conjunto de nove capítulos, “dedicados a cada um dos meus tios e cada uma das minhas tias”. No entanto, confessa, “ficou um vazio”, e com ele a ideia sobre a necessidade de uma “continuidade” à história inicial. Daí surgiu “O Motorista dos Cortes”, um livro “de dupla entrada, pois para além da sequência do primeiro livro tem também um conjunto de histórias soltas” a que o autor chamou “Histórias da Minha Terra”. E explica: “Voltámos ao Alentejo, voltámos às pessoas, voltámos aquilo que era a vida no campo, aos trabalhos, à privação de liberdade… portanto, não consegui fazer uma sinopse perfeita, mas é à volta disto que construí esta narrativa”.

Trata-se de um texto com evidentes preocupações sociais, antropológicas e filosóficas. “Não havia nenhuma mulher entre as Ameixas, que não acrescentasse as relíquias ao vestuário, normalmente junto da roupa interior, em lugar escondido das outras pessoas. Mas a prática estendia-se a toda a população de Santo António, porque se acreditava no poder das figas para dar sorte ou azar, consoante o destino que tinha calhado a cada um, ao longo da vida”.

Nascido na freguesia de Arcos, concelho de Estremoz, licenciado em Sociologia e mestre em Recursos Humanos e Desenvolvimento Sustentável, José Domingos Ramalho é coautor de “Diagnóstico Social. Teoria, metodologia e casos práticos”, foi colaborador regular de diversos jornais regionais, como o “Brados do Alentejo” ou “Terras Brancas”, e fundador do “E”. Diretor do Centro Distrital de Évora da Segurança Social, as preocupações sociais cruzam todo o livro.

“Esta”, diz o autor, “é uma história de alguém que tendo nascido no Alentejo tem uma relação de proximidade com uma pessoa da minha família, em concreto a minha madrinha… e, portanto, este motorista vai viver para Lisboa deixando no Alentejo paternidade que não quis assumir na altura. Esta é toda a história de uma mãe solteira que fica no Alentejo e de um pai que vai trabalhar pra Lisboa. Em resultado dessa união nasce uma criança do sexo feminino que 20 anos mais tarde veio desenvolver estratégias para juntar a mãe e o pai biológico e que o vai conseguir”.

Há uma frase que resume o enredo: “A Xico Ameixa nunca lhe passou pela cabeça abandonar um filho, logo ele, que queria a todo o custo ter mais filhos que o ajudassem nos trabalhos do campo e o presenteassem com netos forte e saudáveis”.

Conhecedor da história local, José Domingos Ramalho faz com que a ficção se plasme com episódios da vida real. Leia-se esta passagem: “Corria o ano de 1874, quando foi estabelecido o hospício de Estremoz. Era um lugar criado para acolher os filhos de pessoas muito pobres, alguns rebentos indesejados ou proibidos, mas mesmo assim algumas pessoas continuaram a usar todas as artimanhas para deixar os bebés nos lugares mais ermos. A sociedade alentejana estava no limiar da honra e da pobreza e esses tempos da infância desvalida e abandonada marcaram várias gerações de alentejanos”.

Em declarações ao “Brados do Alentejo”, o autor diz ter “muita coisa manuscrita”, à espera de publicação. “Diria que não tem faltado motivação ou inspiração, o que tem faltado é tempo porque as minhas funções profissionais consomem muito tempo”. Dito de outro modo: “Quem trabalha com os outros e quem trabalha para as pessoas e com as pessoas não se pode, digamos, dar ao luxo de escrever até porque também não sou um escritor. Portanto, quando houver tempo temos várias possibilidades que podemos a seu tempo publicar e dar a conhecer ao público”.

“Conta-se”, escreve em “O Motorista dos Cortes”, que em 1875, “na escadaria da Sociedade Círculo Estremocense, na Rua das Covas, continuaram a aparecer crianças abandonadas, mas havia outros locais de abandono identificados, nomeadamente a entrada do Hospital Civil, o Rossio de S. João, junto à muralha, a porta do quartel da polícia civil, na casa de entrada do edifício dos Paços do Concelho, à porta de um galinheiro e de uma cavalariça em Évora-Monte e num forno de lenha na Rua Direita, em Estremoz”. Tempos distantes, memórias de uma realidade que continua bem presente no imaginário local.

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