Ana Luísa Delgado texto | Gonçalo Figueiredo fotografia
Quase metade dos doentes que acorrem aos serviços de urgência dos hospitais alentejanos corresponde a doentes não urgentes. Situação decorre da falta de resposta nos centros de saúde e põe em risco o atendimento aos casos verdadeiramente graves.
Às urgências dos quatro principais hospitais da região (Évora, Beja, Portalegre e Litoral Alentejano) acorrem todos os dias, em média, 760 doentes não urgentes. De acordo com o Ministério da Saúde, 41% dos doentes atendidos nos serviços de urgência da região “são triados” com pulseira verde, azul ou branca. Ou seja, correspondem a casos considerados pouco ou não urgentes, falsas urgências cujo atendimento deveria ser feito nos centros de saúde.
“Este problema das falsas urgências nos serviços hospitalares existe porque temos falta de resposta no âmbito dos cuidados primários”, diz Hugo Esteves, vice-presidente do Sindicato dos Médicos da Zona Sul (SMZS), sublinhando tratar-se de uma situação equivalente à do resto do país. “As pessoas têm muita dificuldade em aceder ao seu médico de família, ao centro de saúde, para resolver situações que eventualmente tornariam desnecessário recorrer a um serviço de urgência hospitalar bastante mais diferenciado”.
Segundo Hugo Esteves, as falsas urgências abarcam “todas as faixas etárias, da pediatria aos doentes mais idosos” e decorrem “o ónus não está tanto nas pessoas que têm um problema de saúde que tem de ser resolvido, mas na própria organização do Serviço Nacional de Saúde para responder de forma mais resolutiva em termos de prestação de cuidados”. O dirigente do SMZS sublinha a importância de “melhorar a articulação” entre os hospitais e os centros de saúde, o que se torna particularmente complexo numa região como o Alentejo, com população muito dispersa e com uma “particular carência de recursos humanos”, nomeadamente médicos família, pediatria e ginecologia/obstetrícia, entre outros.
“O ideal seria que os doentes já chegassem aos hospitais referenciados pelos cuidados de saúde primários. Como isso não sucede, a nível hospitalar torna o problema muito mais complexo pois o número de doentes diariamente atendido nas urgências é praticamente incomportável atendendo aos recursos humanos que temos, bastante deficitários no Alentejo”, diz Hugo Esteves.
A falta de literacia em saúde – “há um trabalho que está por fazer, que é informar as pessoas onde se devem dirigir quando têm um problema de saúde sem gravidade” – e os “constrangimentos” no funcionamento da Linha Saúde 24 são outras das razões apontadas pelo vice-presidente do SMZS para a existência de uma percentagem tão elevada de falsas urgências.
Ainda de acordo com Hugo Esteves, sem essas respostas “é compreensível que as pessoas recorram imediatamente aos hospitais pois têm uma situação de doença para ser resolvida, mas isso coloca uma grande sobrecarga em relação aos serviços hospitalares” e ao atendimento das situações de maior gravidade. “Tem de ser feito um grande esforço para fortalecer os recursos humanos e dar uma resposta mais organizada nos cuidados de saúde primários, retirando uma carga de afluxo de doentes às urgências hospitalares, o que permitiria tratar melhor quem verdadeiramente precisa”.
“ÚNICA ENTRADA NO SISTEMA”
Presidente do Conselho Sub-regional de Portalegre da Ordem dos Médicos (OM), Hugo Capote lembra que o recurso às urgências hospitalares é, muitas vezes, “a única forma de entrada” dos doentes no SNS, desde logo pela insuficiência de resposta por parte dos centros de saúde. “Os cuidados de saúde primários não dão resposta. O que está aberto 24 horas por dia, e com todas as valências, são as urgências hospitalares”. Assim, o acumular de doentes não urgentes nos corredores hospitalares faz com que “o tempo de espera para as verdadeiras urgências aumente, pondo em risco o atendimento a essas pessoas”.
De acordo com Hugo Capote, o problema só se ultrapassa “aumentando a rede de cuidados de saúde primários e alterando a organização” do sistema. “Portugal é dos poucos países do mundo em que qualquer pessoa vai à urgência e tem de ser vista por um médico. Há vários países do mundo em que as pessoas só podem recorrer às urgências depois de terem sido vistas e encaminhadas pelo seu médico assistente ou orientadas pelos serviços de urgência. Pode ser uma alternativa, mas isso são opções políticas que os governos têm de fazer”, sublinha.
O responsável da OM em Portalegre chama também a atenção para os condicionalismos decorrentes da falta de médicos nos cuidados de saúde primários. “Pode inventar-se a estrutura organizativa que se quiser, podem colocar-se os centros de saúde debaixo do mesmo conselho de administração do hospital e tentar interligá-los, mas se não houver médicos de família as pessoas vão continuar sem resposta e a recorrer às urgências”, conclui.
Opinião diferente tem o presidente do conselho de administração do Hospital do Espírito Santo de Évora (HESE), que será brevemente transformado em Unidade Local de Saúde (ULS), a quarta a existir no Alentejo, e onde há cerca de um mês morreu um doente, de 82 anos, que aguardava para ser atendido no serviço de urgência.
“Temos uma estratégia, com a criação da ULS, para desenvolver toda a área de cuidados de saúde primários para que todas as pessoas tenham médico de família, se sintam seguras, acompanhadas, e evitem ao menor sinal de doença dirigirem-se às urgências. A questão está sempre na comunidade e no seguimento dos doentes”, diz Vítor Fialho, defendendo que, “do ponto de vista clínico”, é uma solução que “só traz vantagens”.
Na urgência de Évora, os doentes que sejam considerados como não urgentes ou pouco urgentes passaram a poder optar por uma consulta na Unidade de Saúde Familiar, agendada diretamente pelo hospital e isenta do pagamento de taxa moderadora.
FALTAM MÉDICOS DE FAMÍLIA
O excesso de doentes nas urgências hospitalares deve-se não só, nalguns casos, à falta de médicos de família nos centros de saúde, mas também a um problema de “literacia de acesso” que é preciso resolver, diz Fátima Fonseca, da direção executiva do Serviço Nacional de Saúde, defendendo a necessidade de “reorganizar toda a resposta na área de integração de cuidados, de forma que esta resposta seja ágil, indo ao encontro das necessidades dos utentes”. Sobre as longas horas de espera no hospital de Évora, Fátima Fonseca diz que o problema decorre da “falta de cobertura de médicos de família” nos centros de saúde.