PUBLICIDADE

Homenagem. O nosso amigo Aníbal Falcato Alves

José Emílio Guerreiro, texto

A Concelhia de Estremoz do PCP promoveu uma sessão evocativa de Aníbal Falcato Alves. Pretexto para revisitarmos a vida e obra deste estremocense ilustre.

O Aníbal Falcato Alves nasceu em Estremoz, em 1921, na antiga freguesia de Santo André, no seio de uma família numerosa, com tradições republicanas e democráticas. Era um verdadeiro clã… com grande influência na cidade, que se estendia ao comércio, oficinas, agroindústria e ensino.

O Aníbal fez o curso de canteiro artístico na Escola Industrial António Augusto Gonçalves que funcionava na Rua da Pena, com o mestre Prudêncio Oliveira – autor do busto em pedra do Dr. Marques Crespo. Porém, não seguiu a profissão. Começou a trabalhar, ainda muito novo, como caixeiro na Tabaqueira, no Rossio, que era propriedade dos tios Francisco Alves e João Alves. A Tabaqueira era um misto de papelaria, livraria, tabacaria, agência bancária e bazar. Explorava ainda uma bomba de gasolina que funcionava com alavanca manual.

O Aníbal prestava os seus serviços sem ordenado. Dizia com ironia que os patrões todas as semanas o aumenta- vam para o dobro. Farto de ser aumentado tantas vezes, o Aníbal das tertúlias de café e das voltas ao Rossio até às tantas da noite decidiu em 1955 estabelecer-se por conta própria numa pequena loja que se dedicava à venda de material escolar e de escritório, na Rua 5 de Outubro, onde está atualmente o atelier do barrista Zé Carlos Rodrigues.

A loja tornou-se muito popular, por causa da tábua de passar a ferro que servia de balcão. No início dos anos 60, a papelaria Aníbal mudou-se para a antiga Loja do Boneco, da família do major Mário Tomé. A mercearia fechou, quando o dono se mudou para a Guiné-Bissau.

A livraria não era apenas uma loja. Era um verdadeiro centro cultural. Um local de referência. Não foi por acaso que a biblioteca itinerante da Gulbenkian escolheu o passeio em frente à livraria para estacionar, quando começou a vir a Estremoz. O Armando Carmelo sabia bem que era ali que se concentravam os potenciais leitores. A paciente “burra” – como o Carmelo lhe chamava – ai permanecia horas a fio a cumprir a sua missão.

Quando achou que estava pronto, o Aníbal casou com a prima Natália. O casal foi morar para o bairro da Mata, numa casa construída pela Caixa de Previdência do Ministério da Educação Nacional. O Aníbal plantou no quintal uma cambota em ferro, encimada por uma pedra furada e disforme, que era motivo de curiosidade para quem passava na rua.

Em 1954, juntamente com Joaquim Vermelho, Armando Carmelo, Jacinto Varela, Rui Pacheco e Janeiro Acabado fundou o Cineclube, que foi uma pedrada no charco que era o marasmo cultural da cidade. O eco do trabalho que o Cineclube estava a fazer chegou a Lisboa e o SNI tratou de lhe cortar a independência, ao impor uns estatutos do seu agrado.

Em 1960, o Aníbal é uma das testemunhas da demolição da igreja de Santo André. No meio da polémica que se instalou, dizia-se por piada que o Apóstolo Santo, nas vésperas de ser derrubado do seu pedestal, teve este diálogo com o Aníbal: – “Eu sei que tu não és homem de missas, mas eu não conheço mais ninguém aqui na rua. Peço-te que me arranjes uma colchão macio, porque eles são uns brutos e eu tenho medo de partir a cabeça”.

A verdade é que a estátua em pedra mármore caiu de uma altura de cerca de 20 metros para um monte de estevas e ficou inteira. Depois de ter andado em bolandas por vários sítios, em 1995 o santo regressou às origens. Foi colocada mesmo em frente à papelaria Aníbal. Não sei se foi de propósito.

Em 1963, o Aníbal foi convidado para expor a sua pintura no Salão da Primavera da Sociedade Nacional das Belas Artes em Lisboa. Nunca mais parou de fazer e de mostrar os seus trabalhos. Ainda não se falava de artesanato e já o Aníbal andava de monte em monte, de aldeia em aldeia, à procura de artesãos e das peças que executavam, passando horas a vê-los trabalhar. Incentivou muitos e ajudou muito o Talhinhas e o Manuel Jaleca quando estes andavam pela região a mostrar os Bonecos de Santo Aleixo. Como o Aníbal aparecia em todos os sítios, o Talhinhas chegou a pensar que ele era da polícia…

HUMOR DE “FINO RECORTE”

O Aníbal era também uma pessoa com um humor imprevisível e de “fino recorte”, que nem todos alcançavam. Uma vez, entrou na livraria um agente da PIDE que o Aníbal já conhecia. O Aníbal estava a tremer muito. O PIDE ter-lhe-á dito para ficar descansado, que era apenas uma inspeção de rotina. “Sabe senhor inspetor, só o vosso cheiro põe-me nervoso”, terá retorquido o Aníbal.

O Aníbal gostava muito de recorrer a trocadilhos. Tratava o médico otorrino Malaquias Pimentão por Malacão Pimentias. A Mafalda, filha do Xico do Cano, era a Mama na Fralda. Um carioca de limão era um carião de limoca. E por aí fora.

Entretanto, em 1971, o Aníbal começou a dar aulas de trabalhos manuais na Escola Preparatória. No caminho para a escola, ao volante da sua Citroen Ami toda desengonçada, ia recolhendo os alunos que encontrava até não caber mais ninguém. Apesar de tremer muito, o professor Aníbal era capaz de desenhar uma linha reta com toda a perfeição. Os alunos ficavam espantados.

A faceta do Aníbal ceramista será talvez a menos conhecida. Não produziu muita cerâmica. Mas resistiram ao tempo alguns pratos do Redondo de 1974. Dois deles foram encontrados por acaso à venda no mercado de velharias em Estremoz e comprados pelo Hernani Matos. São uma autêntica relíquia.

Ainda menos conhecida será provavelmente a sua experiência como ator de cinema. No filme realizado pelo Armando Carmelo em 1960, “O Tempo dos Tordos”, faz o papel de latifundiário. Em 1985, será professor no filme de Manuel Costa e Silva “ A Moura Encantada”.

À sua personalidade de artista, o Aníbal juntava o prazer do convívio com os amigos. Gostava de fazer e inventar petiscos. Para não ser apanhado desprevenido, andava sempre com uma morcela e uma farinheira no bolso. Em 1979, a recém-criada Casa da Cultura comprou o título do jornal “Brados do Alentejo”. O Aníbal, preocupado com as questões ambientais, escreve no jornal alguns artigos sobre as grandes plantações de eucaliptos na Serra d’Ossa que, na sua opinião, iriam afetar os recursos hídricos da zona.

O tempo veio dar-lhe razão. A fonte de Vale de Infante que abasteceu vários séculos o hospício dos eremitas de S. Paulo e regou os laranjais está seca há anos.

GASTRONOMIA E LIVROS

Em 1983, quando a Câmara Municipal decidiu realizar a Cozinha dos Ganhões no Rossio, o Aníbal foi dos mais entusiasmados com a ideia de trazer para a cidade os comeres das aldeias. E o seu contributo foi decisivo para o sucesso da iniciativa, que ainda hoje marca a agenda cultural do Município. O Aníbal atreve-se então a escrever dois livros sobre a cozinha tradicional alentejana e os ingredientes que os pratos dos pobres não levavam. “A Cozinha dos Ganhões” e “Os Comeres dos Ganhões” tiveram mais do que uma edição.

É ainda neste ano que os amigos e conterrâneos Armando Alves e Rogério Ribeiro desafiam o Aníbal para oferecer um trabalho da sua autoria para a Galeria de Desenho que estava a ser montada, na zona do Castelo, no Palácio de D. Dinis. O Aníbal contribuiu com um desenho a tinta da china que representa uma paisagem urbana, o qual passou a figurar ao lado de obras dos melhores artistas nacionais. É provavelmente a época de ouro da vida do Aníbal.

No seu trajeto pelo Alentejo, Michel Giacometti vem a Estremoz fazer recolha de música e tradições orais nas aldeias. O Aníbal acompanha-o e recolhe ele próprio alguns testemunhos na região de Pavia. Esse trabalho de campo vai dar origem ao livro “Rezas e Benzeduras”, com prefácio de António Simões. As fotografias de Manuel Costa e Silva que aparecem no livro são também belíssimas.

Quando completou 70 anos, um grupo de amigos organizou-lhe uma festa. Veio gente de todo o País. Muita gente, atraída pelo mesmo impulso da amizade. Fernando Lopes Graça, já com 84 anos, fez questão de estar presente. De regresso a Lisboa, exclamou: “Fico com inveja do Aníbal. Tantos e tão bons amigos que ele tem”.

ESPIGAS EM VEZ DE FLORES

Com a idade a avançar, a doença de Parkinson estava a manifestar-se cada vez mais. Depois de muita resistência – o Aníbal tinha horror aos médicos – aceitou ir tratar-se à União Soviética. Esteve umas semanas em Moscovo. Quando regressou, estava bastante melhor. Tinha deixado de fumar e arrumou o cachimbo que era seu companheiro desde a juventude. Porém, ao contrário da Senhora de Fátima, mesmo a melhor medicina não faz milagres. E a doença acompanhou-o até à morte. Quando o Aníbal faleceu em 1994, vítima de atropelamento na EN4, juntaram-se à sua volta muitos amigos. Não lhe levaram flores. A homenagem fúnebre foi-lhe prestada com espigas de trigo, simbolizando a sua profunda ligação à terra. O Aníbal está sepultado no talhão 3508 do cemitério de Estremoz. Numa campa diferente de todas as outras, com assinatura do escultor José Aurélio.

Partilhar artigo:

FIQUE LIGADO

PUBLICIDADE

PUBLICIDADE

© 2024 SUDOESTE Portugal. Todos os direitos reservados.

Desenvolvido por WebTech.