Júlia Serrão (texto) Gonçalo Figueiredo (fotografia)
Viagem pelas memórias de Eduardo Olímpio, poeta do Alentejo nascido em Alvalade do Sado. Experimentador de profissões – foi caixeiro, jogador de futebol, segurança, rececionista, livreiro, tradutor e editor – sabia desde os 10 anos que o que queria, o que queria era ser escritor.
Nasceu em Alvalade de Sado, freguesia de Santiago do Cacém, no pico do inverno de 1933. A 24 de janeiro. Aos seis anos já lia o “Mosquito” e o “Diabrete”’, dois “jornaizinhos para crianças” que o pai assinava para o presentear, e os livros “lamechas” das três irmãs mais velhas. Na escola, teve “a sorte de ter um professor poeta” que “se apegou” a ele. Manuel Anaia começou a ler-lhe poesia, e Eduardo Olímpio Estulano Espada começou a escrever tendo-o como referência. Tinha oito anos quando o mestre-escola assinou um artigo sobre ele no jornal “Odemirense”, dando conta que nascera “um poeta”. Três anos depois voltou a referi-lo no Jornal “A Planície”, de Moura, “onde estavam os intelectuais de esquerda Miguel Serrano, Maria Rosa Colaço e Irene Lisboa”, com quem se correspondeu durante a juventude.
Comunicador, mas também observador, “aprendia só de ver”. “Era o meu bem e o meu mal”, comenta. Bom aluno e tendo uma excelente relação com o professor, pois partilhavam o interesse pela leitura e pela escrita, era olhado “um pouco de esguelha” por alguns colegas.
A saída de Eduardo Olímpio da casa de família para trabalhar foi quase tão precoce quanto a escrita. Depois de uma breve passagem pelo Algarve, fixou-se em Melides, aos 14 anos, onde permaneceu até aos 21. “Trabalhava numa firma que era única, pois tínhamos padaria, mercearia, loja de fazendas e farmácia. Eu coordenava todos os setores”.
No seu currículo constam muitas profissões, que justifica: “Eu tinha já a noção que só trabalhava para quem gostava. Estive meio-dia numa casa, mas também 12 anos numa livraria, era sócio, e três anos na Editora Plátano”. Nenhum emprego o impediu de se entregar à escrita na forma de poesia e prosa, a que mais tarde se dedicou a tempo inteiro. Publicou o primeiro conto em 1947 no jornal “Brados do Alentejo”. Chama-se “O Almocreve”. “É a história do meu irmão, que era almocreve no monte de uma nossa tia, que era rica”, aponta. Anos depois, o irmão voltaria a inspirá-lo.
Aos 10 anos já sentia que queria ser escritor. “Fazia versos que entregava” ao professor e às irmãs, então seus leitores fiéis. O estilo da escrita era influenciado pelo de Manuel Anaia, “que escrevia sonetos de faca e alguidar, próprios daquele tempo”.
Em Melides, Eduardo Olímpio viveu “cercado de nada”, numa aldeia que tinha cerca de 300 habitantes, a maioria trabalhadores dos arrozais, quase todos analfabetos. Ouvia a rádio, lia o “Diário de Notícias” e “O Século”. E graças a um amigo de Santiago do Cacém, que tinha uma biblioteca e alugava livros a 10 tostões por semana, leu John Steinbeck, Balzac, Jorge Amado e outros. “Li todos os grandes autores da altura, tinha 14 ou 15 anos.” Um dia teve a ideia de fazer recitais de poesia no adro da escola, e recitou o “Cântico Negro”, de José Régio, “Os Cinco Sentidos”, de Almeida Garrett, e “O Ideal”, de António Feijó. Foram cinco sessões com “casa cheia”, que a população aplaudiu entusiasmada. Sempre que as pessoas da aldeia precisavam tratar de burocracias escritas, era ele que preenchia os formulários. Também lhes escrevia as cartas. “Sentia-me tutor”, garante, adiantando que também aprendeu muito com todos esses trabalhadores.
É neste período, aos 18 anos, que publica o seu primeiro livro “As Esmolas do Mendigo”, numa edição de autor. “Era poesia e não era muito boa”, diz, sorrindo.
Aos 21 anos mudou-se para Setúbal para ser jogador de futebol no Vitória, mas ficou só oito meses. “Pesava 50 quilos e não tinha genica suficiente para a bola”. O seu sonho era ir para Lisboa. Na capital conheceu a mulher, “a menina da caixa”, sua colega no armazém onde encontrou trabalho.
Casou com 24 anos e foi já na condição de casado, três anos depois, que concluiu o antigo sétimo ano do liceu. Junto há 63 anos, o casal tem uma filha, um filho e dois netos, que o escritor diz serem os seus “maiores romances”.
Na livraria de que era sócio convivia “com muita gente boa”, diz, ao referir-se a Vitorino Nemésio, Agostinho da Silva, Herberto Hélder ou Manuel da Fonseca. Alguns personagens dos seus livros nascem das conversas aí trocadas. “As minhas ideias vinham sempre do sítio onde eu estava ou com quem eu contactava. Os meus livros são a vida que eu conheci ou que vivi”, afirma, para revelar que gosta mais de escrever poesia do que prosa. “De longe”.
“TEXTOS ENCANTATÓRIOS”
Duas obras de Eduardo Olímpio, “António dos Olhos Tristes” e “Um Girassol Chamado Beatriz”, acabam de ser reeditadas num só livro, que tem a chancela da Colibri. “São textos encantatórios, de um imaginário marcante que dignifica a caminhada humana, com uma atmosfera poética que eterniza o autor e o seu olhar criativo”, diz o poeta e antropólogo Luís Filipe Maçarico.
“O MEU ALENTEJO JÁ NÃO EXISTE”
Quando em 1975 Eduardo Olímpio publicou “António dos Olhos Tristes” estava longe de imaginar a reação dos críticos, que a consideram uma das suas melhores obras. “Foi mais longe do que eu pensava”, afirma. É a história de “um menino que vivia num monte” e que “sabia falar com os bichos todos que há na vida”.
O monte que serve de palco à narrativa era o da tia rica, lavradora, chamado Vale de Zebro de Cima, onde trabalhava o seu irmão, 10 anos mais velho, “um homem ligado ao campo, à terra e aos animais”.
“O António dos olhos tristes”, diz Eduardo Olímpio, “é 50 por cento o meu irmão, e 50 por cento aquilo que eu aprendi no Alentejo, no campo”. O monte também era um lugar especial. Todos os anos ali passava de oito a 10 dias de férias. Recorda que “era um deslumbramento viver no meio” daquele Alentejo.
Dos muitos livros que escreveu, diz não ter um preferido, que gosta de todos. Mas acaba por mencionar “Às Cavalitas do Tempo” – “de que pouca gente fala”, refere –, considerando-o “o primeiro amor”. Gosta muito dele e gostou muito de o escrever. Agora, aos 90 anos, os seus dias continuam preenchidos pela escrita e pela leitura. “Li tudo no tempo próprio. Mas, de vez em quando ainda fico deslumbrado com alguns livros”, admite. Há cerca de dois meses publicou “A Feira da Ladra” em poesia, e os versos voltaram a rimar.
Para além dos interesses literários, atualiza-se com matérias desportivas, pois diz-se “um tarado por desporto”. Não é “muito de conviver, o que pode ser um pouco esquisito para um escritor”, ressalva, mas defende que a convivência tem de ser sincera. “Gosto muito de estar comigo”. Sempre que pode, também volta ao lugar onde nasceu, para sentir o pulsar da paisagem alentejana.
“O meu Alentejo já não existe! Mas eu quando lá vou ainda arranjo quadradinhos meus: uma seara; um monte de papoilas; [escutar] os grilos. Haverá alguma coisa mais linda que um campo de papoilas?”, interroga.