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“Há alturas da vida em que a minha realidade não chega”

Francisco Alvarenga, texto | Ricardo Zambujo, fotografia

Nada mais havendo a acrescentar… Livro 5”, de Vítor Encarnação, com ilustrações de Joaquim Rosa, retrata as vivências do autor no Alente- jo, num “olhar sobre a realidade exterior e interior “que nos embala numa narrativa em que a realidade supera a ficção. Há alturas da vida em que a minha realidade não chega”, diz o autor.

Personagem recorrente na escrita de Vítor Encarnação, o homem que fala sozinho na esplanada confessa já ter perdido a esperança em livrar-se da dor.“ Já não sou novo e a dor é da minha idade, desde que me lembro de ser gente que ela anda dentro de mim, se calhar já nasceu comigo, a minha avó bem queria que me levassem à bruxa, levem-no à bruxa, o moço tem uma coisa”. Da dor tentou desfazer-se na poesia, “amarrava-a com palavras fortes e fechava o caderno”, ou nas noites felizes em que não ia para casa, “para que ela não me pudesse encontrar”.

Percorridas mais umas páginas, haverá de nos falar de circunstâncias e de feitios e até de uma lista, não para casamentos ou batizados, mas para convidados daquele que será o seu próprio funeral: “Só de pensar em ter lá alguns de roda do caixão dá-me voltas ao estômago, não preciso lá de velhacos”.

Professor e cronista, Vítor Encarnação lançou agora “Nada mais havendo a acrescentar… Livro 5”, uma edição da Mundobtuso, coletânea de crónicas que “se agarram umas às outras” e por onde passam muitas das vivências do quotidiano, visto do lado de cá do Tejo.

“Cada crónica é sobre a parte de dentro das pessoas e guarda, para memória futura, a minha visão do tempo em que vivo. Tratam de assuntos que mais não são do que a eterna e frágil condição humana, pessoas à procura de um nexo relativamente à vida e a todos os seus reversos”, conta Vítor Encarnação, dizendo pretender que cada um destes textos “faça sentido e tenha uma identidade independentemente do tempo em que se vive, sobrevivendo à espuma dos dias”.

Ao longo dos anos, o autor foi criando personagens como o filho e o pai, o neto, o homem que fala sozinho na esplanada, os namorados, a mulher e o marido, a mulher solitária, o homem solitário, mas também o tempo, a morte, a cisma, a esperança, o Alentejo. “Através delas posso dizer coisas que em nome próprio eu não diria, posso até fazer de conta que não tenho nada a ver com aquilo”, refere.

São crónicas com gente por dentro. Como aquele neto fascinado por o avô, que “ainda agora ali estava no quintal”, lhe ter dito que ia ver o mar, logo ele que morava “tão longe” do mar: “A resignação é uma morte quotidiana. O avô ensinou-me a ver o que está sem estar e a ver o que não está estando”. Ou a personagem que ofereceu um gato como prova de amor: “Lembro-me que na primeira noite ronronámos os três deitados no sofá. O gato cresceu e o nosso amor diminuiu, é isso que o tempo faz com os gatos e com o amor, aumenta uns, reduz o outro, já não ronronamos os três ao mesmo tempo”.

Para Vítor Encarnação, a escrita “é uma forma de poder regressar ao passado e antecipar o futuro, no fundo poder ir a sítios onde o tempo e o corpo, os dois maiores limitadores da nossa vida, não nos deixam ir, pois o tempo e o corpo só nos deixam viver no presente”.

Ora, acrescenta, dando vazão ao peso do pensamento, a escrita permite-lhe “ir resolvendo a complexidade da existência”. Dito de outro modo: “Há alturas da vida em que a minha realidade não chega e crio alternativas e há outras alturas em que a minha realidade é tão intensa que apenas tenho de a aproveitar e escrever sobre ela”.

HUMANISMO E EMPATIA

No prefácio, Paula Santos, diretora da Biblioteca Municipal José Saramago (Beja), refere que a escrita de Vítor Encarnação “é única na forma como cultiva o humanismo e a empatia, tão necessários num mundo que irrefreavelmente promove o individualismo isolacionista, em que cada pessoa é cada vez mais uma ilha, de preferência deserta”.

“O seu olhar sobre a realidade exterior e interior embala-nos numa narrativa em que a realidade, de facto, supera a ficção. As histórias contadas na primeira pessoa são ao mesmo tempo simples e cheias de camadas de complexidade, para quem quiser ler nas entrelinhas”, acrescenta Paula Santos, para quem o “fascínio” da escrita de Vítor Encarnação “está na forma como nos faz olhar para o que nos conta, como se tivesse saído de entre os fios da nossa memória afetiva, como se por magia lhe tivéssemos pedido que desse voz às nossas vivências e pensamentos mais especiais”.

Nascido em 1965 na Aldeia de Palheiros, Vítor Encarnação viveu em Ourique, Castro Verde, Feijó, Amadora, Laranjeiro e Alemanha, mas concluiu que não podia viver noutro sítio que não fosse o Alentejo. Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, é professor de Inglês e Alemão e autor de mais de 20 títulos, incluindo crónica, poesia e literatura infantil. É também dirigente da Associação de Escritores do Alentejo (Assesta).

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