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Maria do Céu Ramos e os 60 anos da Fundação Eugénio de Almeida

Os 60 anos da Fundação Eugénio de Almeida e entrevista com a secretária geral Maria do Céu Ramos: celeridade e serenidade.

Alexandre de Barahona (texto e fotografias)

De rompante, “a linha de evidência da vida política é mais masculina, o não evidente tem de ser procurado, tem de haver uma intenção, de olhar duas vezes para encontrarmos o lado feminino da realidade. E eu faço parte dele”. Ao que contraponho como sendo comum ver as mulheres na esfera de liderança comportarem-se diferentemente, abdicando da sua feminilidade, comunicando, comportando-se como os homens. É um erro de perceção meu? – questiono. “Não é um erro de perceção e respondo desde logo por mim, porque vivi isso, senti isso na pele”. Di-lo com uma voz serena e um olhar límpido, que só as mulheres metópicas conseguem transmitir. “De alguma forma, a exposição na vida política viriliza as mulheres porque as coloca na posição de não serem dissonantes do padrão masculino. As mulheres estão na política com ousadia, coragem e esforço, tal como os homens, mas como as circunstâncias não estão a seu favor, como por exemplo em algumas questões que resvalam para o lado da reputação, isso leva a que tenham de se proteger”. E todos perdemos, porque esse evidente virilismo de forma, nas mulheres, as descarateriza e lhes retira boa parte do que acrescentariam a uma liderança feminina. Infelizmente “sim, uma pessoa fica mais acinzentada, perde-se um pouco da identidade nessa tentativa de se afirmar pelo modelo dominante (masculino). Não existe uma timidez de género, isto é um esquema intuitivo de autoproteção, da parte da mulher”. Quem o afirma é Maria do Céu Ramos, uma mulher alentejana formada em Direito e que cedo se destacou, entre 1992 e 95, como secretária de Estado no XII Governo, liderado por Cavaco Silva. Após o que foi deputada (eleita pelo PSD) de 1995 a 1997 e de 1999 a 2002. Nesse momento, deu uma reviravolta e decidiu trocar a ribalta da política nacional pelo seu Alentejo de origem, preterindo uma promissora carreira de estadista, por um destacado cargo executivo na Fundação Eugénio de Almeida (FEA).

O porquê dessa demissão (a palavra está na moda) ninguém percebeu, até lhe fazermos hoje a pergunta. ”Engraçado, é comum perguntarem-me quando regressarei à vida política ativa, mas nunca me perguntaram por que motivo a tinha deixado”. Faz um ligeiro silêncio, como que ponderando, antes de continuar: “Foi por razões pessoais. Estava grávida e a perspetiva de, aos 40 anos, ter um filho levou-me a escolher mudar de rumo. A escolher ser mãe, usufruir e acompanhar o crescimento do meu filho Francisco [hoje com 21 anos], abdicando de um caminho que me tiraria tempo disponível”. Perguntar-lhe se estaria de alguma forma arrependida é algo que nem me passaria pela cabeça, de tal forma o seu rosto se ilumina ao mencionar o filho. Aliás, como explicou, o papel de relevo que tem tido à frente da FEA ofereceu-lhe uma continuada ação de planificação e desenvolvimento na sociedade alentejana. De certa forma, transpôs essa participação na vida política, lá, diretamente para a ação de uma política de desenvolvimento, nas nossas vidas, cá.

Apesar das diferentes e identificadas áreas, em que se desmultiplica a FEA, quis destacar o Centro de Arte e Cultura (CAC), onde anualmente merecem ampla visita do público e de forma gratuita inúmeras exposições de arte contemporânea de nível internacional, além de outros eventos. A nossa entrevistada reconhece que não é necessariamente adepta da gratuitidade total para o acesso às exposições. Isso verifica-se neste momento por vivermos o pós pandemia e por se festejar o 60º aniversário da Fundação. Contudo, “a coerência de uma bilhética associada, como forma de contribuir”, pode trazer mais e sempre melhores mostras artísticas, acrescenta Maria do Céu Ramos, embora reconhecendo que “o nível económico no Alentejo não é idêntico ao de Lisboa ou do Porto. Há que ter isso em conta”. Dito isto, acrescenta: “Fazer exposições, é dispendioso! E fazê-las com a qualidade e o posicionamento do circuito internacional é um investimento da Fundação, com bastante expressão económica.” Porque as instituições são pessoas, como recordava Vasco Eugénio de Almeida, fundador da FEA, resolvo pessoalizar, defendendo essa bandeira da gratuitidade com um exemplo específico. A minha filha tem 14 anos, e levo-a desde pequena, a ela e ao irmão, a visitarem museus, exposições e eventos culturais. Graças a isso, já me surpreenderam em Paris ou Madrid a não quererem sair do Louvre ou do El Prado. No entanto, por Évora, a Laurinha adquiriu o hábito de levar as amigas a passear pelo centro histórico, seguindo rotas que as conduzem às lojas de roupa, claro, à geladaria, livraria e… ao Centro de Arte e Cultura da FEA ver as exposições ali patentes. Sozinhas e por sua própria iniciativa. Caso a entrada não fosse gratuita, talvez não o fizessem com igual emancipação. Maria do Céu escuta e abrindo o sorriso admite: “Isso é das coisas mais bonitas que me podem dizer. Isso, só por isso, já valeu todos estes anos de trabalho! Que haja mais meninos e meninas como a sua filha, que sintam o conforto, a oportunidade, a liberdade de vir aqui e experienciarem as várias exposições, isso é impacto social. E o impacto social mede-se a longo prazo. A nossa geração não tinha isso aos 14 anos, esta porta aberta, porta convite, perante a qual a pessoa se sente estimulada a entrar. E se sente bem, ao fazê-lo”.

REVISITAR O PASSADO

Ao comemorar os 60 anos da FEA, conto os 36 durante os quais Maria do Céu Ramos lhe está afeta. Entrou em novembro de 1987. “Era eu uma miúda, tinha mais 10 anos que a sua filha”. Por essa altura estava a estagiar como advogada no escritório de Sertório Barona, que lhe propôs ir como voluntária à Fundação pois precisavam de auxílio para alguns assuntos jurídicos. E foi assim. Mais tarde, quando desempenhou funções como secretária de Estado da Juventude, interrompeu o seu laço profissional, que reataria em 1998, acumulando as funções de secretária-geral da FEA com as de deputada, num pequeno período, que diz ter sido muito desafiante. “A primeira exposição de arte da Fundação, realizada em 1999, foi feita no Museu de Évora. A FEA não tinha instalações para mostras deste género. É importante revisitar o passado, para compreender como as coisas se transformaram”. Propôs na altura ao professor Jorge Calado para pensar uma exposição, e o resultado da reflexão foi uma vasta mostra, que se chamou “Trilogia” e que era um olhar sobre a Fundação, através das objetivas de três fotógrafos: Mark Power, Paulo Catrica e José Manuel Rodrigues (que acabara de receber o Prémio Pessoa). “Esses documentos fotográficos que também são objetos artísticos mostram-nos a Fundação que já não é. Era-o, nessa altura”. Ficou como um marco, na FEA. Gostaria de saber se passaram rápido estes 36 anos. Diz que “teve ritmos diferentes. Os momentos mais difíceis são mais lentos, quando a coisa corre bem, o tempo foge”. A Fundação não era de todo aquilo que hoje é. Quando chegou, não tinha ainda sido lançada a primeira garrafa do vinho Cartuxa. As primeiras edições de vinho datam de 1987, curiosamente o ano em que Maria do Céu entrou. Em 2023, 60 anos depois de Vasco Eugénio de Almeida redigir os estatutos da sua Fundação, estão a trabalhar 20 pessoas na área da missão, e cerca de 220 funcionários permanentes. Sem contar com os trabalhos sazonais. Labutam em 6500 hectares no Alentejo, gerando as suas marcas enológicas, mas também a produção de azeite, amêndoa e cortiça. Muito desses lucros são reinvestidos na filantropia, na cultura, na ação formativa e social. Ao recordar-se de todos os antigos e atuais colaboradores, abaixo e acima das suas funções centenas, um milhar provavelmente, Maria do Céu ainda se maravilha da sua própria multiplicidade no seio da instituição, que vai muito além das iniciais questões jurídicas. Trata-se de “imaginar o que lá não está e fazer o que lá não estava. Detesto colocar carimbos, preciso de ter desafios estimulantes”, graceja. “Não escreva o que lhe vou dizer, mas eu sou uma pessoa um bocadinho acelerada”, confidencia.

E apesar de lhe ter confirmado que não escreveria, transcrevo-o. Porque neste nosso Alentejo, onde se respira o devagar, devagarinho, e do vagar fazem moda, precisamos igualmente de pessoas “aceleradas”. Precisamos como de pão para a boca de líderes que tenham o juízo da celeridade, e a consciência em serenidade. “É muito bonita a palavra fundador, e Vasco Eugénio de Almeida foi o visionário, criou esta realidade com aquilo que era seu: o seu legado, os seus valores e o seu património. E depois a capacidade de todas as pessoas que por aqui passaram, isto é fruto do muito trabalho, de muito tempo”, segreda a secretária-geral da Fundação. Comovida, acrescenta: “Tenho muito prazer, a alegria e… a honra por ser uma, entre muitos. Mas serei sempre e somente isso, uma entre tantos”.

O PAPEL DAS FUNDAÇÕES

Maria do Céu Ramos ocupa outro cargo de peso, pois preside o Centro Português de Fundações (CPF), que reúne centena e meia das mais prestigiadas instituições, com a relevância que sabemos na sociedade portuguesa, desde a Fundação Calouste Gulbenkian, à Francisco Manuel dos Santos, BCP, Fundação do Oriente, entre outras.

“As fundações são instituições que colocam o seu património privado ao serviço do interesse geral”, lembra a presidente reeleita para o seu segundo mandato. “É muito honroso para mim representar a FEA à frente do conjunto das fundações portuguesas. E devo dizer estou satisfeita pela evolução deste mandato e meio, porque além de representar o sector junto dos poderes públicos e comunicar o valor que os nossos associados encerram, conseguirmos criar parcerias novas e alianças entre fundações em torno de uma ideia de força, que é a filantropia. Desde logo, pelo impacto social. Tenho posto muito ênfase para aumentar esse impacto, e também para que haja reconhecimento desse impacto do sector na sociedade”. “Depois”, prossegue, “há a questão essencial da ética. Para que mantenhamos uma governança, onde primam a ética e a transparência. As fundações estão, e bem, expostas a muito escrutínio, logo as nossas reputação e credibilidade são muito marcantes para o saudável desenvolvimento de todo o trabalho social que temos e para a sua valorização”. No próximo dia 6 de dezembro o CPF celebra os seus 30 anos de existência e nessa ocasião será apresentada uma publicação comemorativa, contendo entrevistas aos que lhe presidiram. Deste modo, Carlos Monjardino, Rui Vilar, Santos Silva, Luís Braga da Cruz e Maria do Céu Ramos, a primeira mulher a liderar este poderoso grémio, traduzirão, todos eles, os seus pareceres em livro. “Há que assumir esse ónus sobre as fundações, de exigência ética, de serem um pouco melhor que o ‘mainstream’ de todas as outras associações”, conclui.

CAPITAL DA CULTURA

Obviamente o Évora 27 teria de vir à baila, na nossa conversa, e adjetivou-o rapidamente como sendo “um momento fantástico”. Mostrando-me um dossier de 2016, aponta que “desde esta época a ideia é trabalhada no seio da FEA e com a cidade; com Ceia da Silva [à época presidente do Turismo do Alentejo], André Espenica [secretário da Cimac], Ana Paula Amendoeira [Diretora Regional de Cultura], uma grande mulher ao serviço da cultura e, claro, com a Câmara Municipal de Évora”. Naturalmente que caberia ao município “dar a cara” pela iniciativa formal, agarrar no projeto e convidar quem está, para construírem oficialmente a candidatura. Ao longo desse processo houve altos e baixos, como sabemos, e “em dois ou três momentos a Fundação Eugénio de Almeida teve um papel fundamental, quando a esperança decrescia”. Justifica-se na diferença entre o privado e o público, onde “o tempo político ocupa um espaço, que empurra ou faz esquecer determinados projetos, em função das prioridades e dos ciclos eleitorais”. A estabilidade e persistência da FEA, sendo à época a única entidade privada neste projeto, foi, percebe-se nas entrelinhas, de extrema pertinência.

EM CARTEIRA

Do passado recente, ao futuro próximo, a FEA, além de Évora 27 no seu todo, tem duas iniciativas autónomas aprovadas. A do “Labirinto da Cidade”, que é “uma ágora móvel contemporânea, a criação de uma estrutura do arquiteto João Ribeiro Mendes” que irá pela cidade fora, pelo concelho fora, e onde todos partilharão um espaço de diálogo e performance. “E uma grande exposição, provavelmente sobre a paisagem”, a natureza, o clima, ainda em análise, no conceito da curadoria. Vislumbramos melhor em torno da entrevista, para lá desse mistério do que teria sido esta mulher, esta senhora, se tivesse prosseguido a sua carreira na alta esfera da política nacional, em paralelo com a realidade que assumiu na sociedade alentejana. Prevejo-a arreliada, por assim a descrever, quando permanentemente prefere a modéstia do esforço à luz dos centros de atenção. “Foi uma boa escolha”, diz, “continuei a servir a minha terra, a minha cidade e região, de maneira efetiva e transformadora” dos contextos e panoramas. Tem consciência dos resultados aqui serem mensuráveis e tangíveis. “Talvez se tivesse ficado na política não pudesse fazer este balanço comensurável do que foi feito. Sabe, sou alguém muito relacionada com o espaço público. Mas sou-o com muito desprendimento”. Dialoga com a franqueza de ser o produto de uma vida de aprendizagem contínua, e “uma pessoa de 60 anos hoje, não é a mesma que era há umas décadas. Tenho convicções, mantendo-me aberta, flexível e descobri que quando tinha os meus 25 anos tinha mais certezas das que tenho agora. Quem sabe, hei de fazer ainda muita coisa, sobretudo projetos na área da transformação social”. É o que se espera de Maria do Céu Ramos, de facto. Mas com ela, não se espera sentado. É em movimento, numa perpétua troca de ideias, onde aquilo que se pode fazer hoje não se deixa para amanhã. Porque amanhã, haverá mais, simplesmente.

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