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Exposição “revisita” património dos Bonecos de Estremoz

Ana Luísa Delgado, texto | Gonçalo Figueiredo, fotografia

Lembram-se da música de Sérgio Godinho? “Às vezes o amor/ No calendário, noutro mês é dor/ É cego e surdo e mudo”. Se ao “Amor é Cego”, também da música, juntarmos a “Primavera”, aí estão dois temas centrais da barrística de Estremoz. Dois temas que serviram de inspiração a 15 artistas para uma recriação do Figurado de Barro. A exposição pode ser vista no CECHAP, em Vila Viçosa, até final de agosto.

“O meu amor é cego”, diz o arqueólogo Manuel Calado, curador da exposição “O Amor é Cego e Primaveras – Da tradição do figurado barrista à contemporaneidade das artes plásticas”, patente até ao próximo dia 31 de agosto na Galeria Aqui d’El Arte, Artes & Letras, em Vila Viçosa. “Que esta exposição seja ambígua como o Amor é Cego/ Entre passados e futuros./ E vibrante como a Primavera”.

Haveremos de voltar a Manuel Calado. Como iremos ao encontro de Ana Cravo e Conceição Cordeiro, comissárias e diretoras artísticas da exposição. Antes, a palavra a Carlos Filipe, diretor do Centro de Estudos de Cultura, História, Artes e Patrimónios (CECHAP), segundo o qual a exposição “remete-nos para uma linguagem de devoção popular, entre o sagrado e o profano, onde as mãos dos mestres moldaram as suas peças com o maior carinho, procurando expressar a sua arte, do saber fazer, com o seu sentimento e significado representativo”.

São mais de duas dezenas de trabalhos expostos, criados por “quem sempre viu as peças da arqueologia como ciência para a transmissão do conhecimento, como uma ponte entre a arte e o saber, entre um passado e um presente”.

Carlos Filipe refere que o ponto de partida para esta exposição foram os Bonecos de Estremoz, reconhecidos em dezembro de 2017 como Património Imaterial da Humanidade, peças produzidas em barro que “representam a excepcionalidade de uma arte popular, cuja prática da sua produção remonta a mais de três séculos de existência, através dos seus artesãos”.

A ideia partiu de Manuel Cala- do, arqueólogo nascido em Rio de Moinhos (Borba) em 1954, e que aqui mostra poemas sobre xisto da Rocha da Mina e azinho do Freixo do Meio. “O Amor é Cego”, pois claro. O autor, explicam as comissárias da exposição no catálogo que a acompanha, “revisita a tradição alentejana” através de “quadras pintadas sobre pedras xistosas recolhidas em locais que conjugam cultura antiga com as suas recentes atividades de investigação, artísticas, pedagógicas e ecológicas”.

Trata-se de “poesia escrita a branco na pedra cinzenta”, que “enfatiza o tempo e dá lugar à inscrição de uma tradição oral”, como se Manuel Calado “gravasse momentos efémeros que aludem a simbólicas celebrações e milagres que se eternizam e cruzam a sua experiência pessoal com o conhecimento erudito da História”.

Conta o próprio Manuel Calado que os Bonecos de Estremoz fazem parte do seu “imaginário, desde que, já lá vão umas décadas, o Joaquim Vermelho, com a paixão fervilhante que o caracterizava”, o fez olhar, pela primeira vez, para esta forma de arte popular. “Apaixonei-me, contagiado, em particular por estes dois temas (pagãos) que as boas tradições populares, inspiradas talvez na mitologia clássica e coloridas pela miscigenação (a meu ver, o melhor lado da aventura colonial portuguesa) com as cores da plumária tropical”.

Nas peças “Amor é Cego” e “Primavera”, o arqueólogo vê um encontro de Cupido, que encarnava a paixão e o amor em todas as suas manifestações. e Proserpina, “uma das mais belas deusas de Roma”, com Jurupari, personagem mitológica dos povos indígenas da América do Sul.

“Curiosamente, a tradição forjada pelos renascentistas, colocou um Cupido no santuário do Endovélico [próximo de Terena]; por outro lado, não restam grandes dúvidas de que a divindade feminina cultuada na região, a par do deus Endovélico, foi a deusa Ataegina, interpretatio [interpretação] de Proserpina”, acrescenta.

Manuel Calado sublinha ainda que as obras selecionadas para esta exposição “deixaram expressamente de fora as figuras produzidas segundo os cânones tradicionais, valorizando, de preferência, a inovação, a criatividade, a exploração de temas e expressões que, tendo em mente e, por isso, evocando a tradição, procuram abrir novos caminhos”.

IMAGÉTICA COMUM

Além das peças de Manuel Calado e Francisco Rosado, mestre Xico Tarefa, que na vila de Redondo se dedica á criação de peças utilitárias e decorativas pintadas com motivos do imaginário popular, a exposição reúne obras de diversos autores, como a escultora Noémia Cruz, Isabel Pires, modeladora de Barrio, Inocência Lopes, com loja/ oficina em Évora-Monte, onde produz “bonecos”, entre outras recriações ceramistas, e João Sotero, pintor e escultor que trabalha em Arraiolos e que se fez representar com uma peça – um busto – em mármore rosa. “Convenhamos”, escrevem as comissárias e diretoras artísticas da exposição, “que todos os artistas residem na região ou, por outras palavras, todos eles conviveram com esta imagética, incluindo o saber fazer que atravessa gerações ou a passagem do testemunho dos processos tradicionais da sua criação”.

Ana Cravo e Conceição Cor- deiro lembram que esta tradição remonta às “boniqueiras”, uma vez que “no início eram as mulheres que faziam os bonecos em barro que eram cozidos a alto fogo e de- pois eram pintados com soluções aquosas e coloridas e, finalmente, envernizados”.

De acordo com as diretoras ar- tísticas da exposição, “se o mote é fácil”, é igualmente “extraordiná- rio procurar ver como todos estes artistas encontraram, a seu modo, um processo que formalizou cada uma destas variações que respon- dem ao chamado” de Manuel Ca- lado. “Se a ironia é a chave para a alma da obra, cada autor tratou dela numa sua fala que não será nem obscura nem clara, mas que podemos tentar interpretar conju- gando aspetos formais e simbóli- cos”, concluem. 

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