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Exposição. Horizontes de Alves Redol passam por Estremoz

A exposição itinerante “Alves Redol, Horizonte Revelado” pode ser visitada até 10 de março, no Museu Municipal de Estremoz. Inaugurada no âmbito das comemorações do 50.º aniversário da Revolução de Abril, trata-se da mais abrangente exposição sobre a vida e percurso literário de Alves Redol, o fundador do neorrealismo em Portugal. Francisco Alvarenga (texto)

Numa epígrafe a “Gaibéus” (1939), Alves Redol apresenta-o como um “documentário” das vivências humanas. “Este romance”, escreve o autor, “não pretende ficar na literatura como obra de arte. Quer ser, antes de tudo, um documentário humano fixado no Ribatejo. Depois disso, será o que os outros entenderem”.

Primeiro romance de Alves Redol, que com ele inaugurou o neorrealismo em Portugal, “Gaibéus”, adverte José Neves, investigador do Centro de Estudos de História Contemporânea do ISCTE, “deve ser lido não apenas como momento inaugural do neorrealismo literário mas também como desenvolvimento do impulso etnográfico que o antecede”.

Por isso, ao escrever aquela nota epigráfica, o autor, “mais do que se indignar contra um pretensiosismo artístico de meios literários”, tenha pretendido alumiar a sua “vontade etnográfica”. Se quisermos, a vonta- de de documentarista.

“O neorrealismo”, sintetiza José Neves, “nasce assim como um movimento intelectual pronto a acolher interpelações não literárias da realidade, predispondo-se nomeadamente a desempenhar as vezes de um conhecimento científico marxista que não teve oportunidade de existir, vedado que foi o seu acesso à universidade”.

Nascido em Vila Franca de Xira a 29 de dezembro de 1911, filho de um pequeno comerciante, Alves Redol sonhava ser médico. Acabou por concluir o curso comercial, ainda trabalhou atrás do balcão, na loja do pai, “onde tem oportunidade de se aperceber do mundo dos gaibéus [mondadores das lezírias], dos camponeses e dos pescadores da sua região”, antes de, aos 16 anos, partir de barco para Luanda “Cheguei de bolsos vazios, uma garrafa de vinho do Porto na mão e uma grande vontade de vencer”, escreveria mais tarde.

Aqui viverá durante três anos, trabalhando como operário, primeiro, e depois na agricultura, “sem amparo de família nem amor bonito de mulher minha”. O seu filho, António Mota Redol, classificará esse período como tendo sido uma “experiência riquíssima”.

O salário é “curto”, mesmo completado com explicações no ensino noturno, a miséria alastra, adoece e acaba por regressar à Metrópole, três anos depois, empregando-se numa casa comercial de automóveis, pneus e lubrificantes, a que se seguem outras atividades profissionais, ao mesmo tempo que colabora com a imprensa, em jornais como o “Mensageiro do Ribatejo”, “O Diabo” ou “Sol Nascente”, entre outros, datando dessa altura, início da década de 30, o início da sua atividade política. Iria, mais tarde, aderir ao PCP.

É também por essa altura que começa a tomar parte muito ativa na vida social da região do concelho de Vila Franca de Xira, através de coletividades como o Grémio Artística Vilafranquense – onde, em 1934, realiza a sua primeira palestra “Terra de pretos, ambição de brancos”, sobre a colonização portuguesa em África – ou o recém-formado Sport Lisboa e Vila Franca, “que aponta para uma cultura das classes laboriosas”, segundo o perfil que a Hemeroteca de Lisboa (HL) lhe traçou.

O grupo de jovens que ficou conhecido por grupo neorrealis- ta de Vila Franca de Xira, integrava Soeiro Pereira Gomes, Dias Lourenço, Garcez da Silva, Bona da Silva e Arquimedes da Silva Santos.

“Por volta de 1933”, escreve José Neves [“O comunismo mágico-científico de Alves Redol”, in “Etnográfi- ca”, vol. 11] “Redol e Dias Lourenço procuravam dinamizar culturalmente o Sindicato da Construção Civil e Ofícios Correlativos, distribuíam clandestinamente o “Avante!” (…), organizavam legalmente várias atividades culturais, de cursos de alfabetização a aulas de esperanto, primeiro naque- le sindicato e depois em associações como o Sport Lisboa e Vila Franca”.

Ainda de acordo com o mesmo autor, “na luta pela massificação da cultura”, os intelectuais comunistas da época “foram levados à concetualização/idealização de uma cultura popular, e foi atrás desta que partiram alguns intelectuais neorrealistas, procurando na vida do povo sinais de uma cultura indígena por revelar”.

A coletividade acaba por ser encerrada pela polícia política. Alves Redol intensifica a sua colaboração na imprensa, tendo iniciado a publicação de livros com um ensaio etnográfico intitulado “Glória, Uma Aldeia do Ribatejo”, em 1938. Trata-se, sublinha o perfil da HL, de um “estudo etnográfico” onde as suas aptidões ficcionistas “se patenteiam” e no qual “se revela o método que marcará toda a sua obra literária: a vivência e o reconhecimento profundo dos problemas, só atingido com o contacto estreito com os locais e grupos sociais sobre que se debruça”.

“Gaibéus”, como se disse, é publicado em 1939 e dedicado aos seus avós, “à memória de Venâncio Alves e João Redol, ao ferreiro e ao campino”. No livro, “o trabalho é quem mais ordena”. Como refere José Neves, “em vez de um enredo cadenciado por relações pessoais de índole familiar, amorosa ou política, tudo se centraliza no mundo do trabalho. Em vez de nomes e histórias de vida, as personagens ganham densidadeatravés das descrições exaustivas dos seus corpos trabalhando. Estes corpos são decompostos a um tal ponto que, mais do que um corpo que trabalha, existem extensões que reagem por instinto (…) sob o automatismo do processo produtivo”.

“É tendo o campo por cenário que se inicia o divórcio entre homem e natureza, com o tempo da produção industrial capitalista a se divorciar do tempo da natureza: a sede chega primeiro aos corpos que trabalham e só depois é que a hora da pausa para a água chega ao relógio dos capatazes”, resume o investigador do ISCTE.

A “Gaibéus” seguem-se “Marés” (1941), Avieiros” (1942) e “Fanga” (1943), “todos de ambiente ribatejano, mas de ambições universais”, depois “Anúncio” (1945), uma novela de “ambiente lisboeta”, iniciando então um conjunto de romances centrados na região do vinho do Porto, a que seguiriam muitas outras obras.

A sua vasta produção literária, assinala o catálogo da exposição biográfica agora patente em Estremoz, inclui também contos, como “Nasci com Passaporte de Turista” (1940) ou “Constantino, Guardador de Vacas e de Sonhos” (1962), peças de teatro, como “Forja” (1948) ou “O Destino Morreu de Repente” (1967), estudos de carácter etnográfico, “resultantes da curiosidade sobre a vida real do Ribatejo profundo”, entre os quais “Romanceiro Geral do Povo Português” (1964), e mesmo literatura infantojuvenil.

Preso e torturado pela PIDE a 12 de maio de 1944 – “nem um lápis, nem um papel para escrever” – morre em Lisboa a 29 de novembro de 1969, tendo o seu funeral sido acompanhado por milhares de pessoas, apesar de “fortemente reprimido” pela polícia política.

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