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Évora: À “descoberta” das associações centenárias

Alexandre de Barahona (texto e fotografia)

A Biblioteca Pública de Évora tem patente ao público a exposição“ A cultura material nas associações ibéricas”, com curadoria de Maria Zozaya-Montes. Trata-se de uma exposição “imersiva” que procura reproduzir o ambiente dos espaços associativos, que reúne mais de 60 peças originais, nunca antes expostas, das principais associações históricas da cidade, com mais de 120 anos de existência, representando diferentes classes sociais e grupos profissionais.

Desde o primeiro apertar de mãos, Maria Zozaya-Montes demonstra por gestos e palavras, ter uma energia e força de vontade pouco habituais. Expressa-se com desenvoltura no seu português “seleto”, porém com impaciente ritmo castelhano, e como a própria o diz, “é uma pessoa extremamente sociável”.

Vem mesmo a propósito, pois na Biblioteca Pública de Évora decorre uma curiosa e interessante exposição, cujo tema são as sociedades eborenses. Por ali podemos ver e por vezes tocar, oferecendo-nos a sensação de viajar a outros tempos, examinando o histórico espólio “roubado” pela investigadora a várias entidades que acederam participar.

Maria Zozaya contactou várias sociedades eborenses centenárias, tais como a Sociedade União Eborense conhecida como “Bota Rasa” ou a Sociedade Harmonia Eborense, ambas com as sedes na notória Praça do Giraldo. Mas também a Sociedade Operária de Instrução e Recreio Joaquim António d’Aguiar, a Sociedade Dramática Eborense (antiga Mocidade) e o Círculo Eborense.

“Fui bater às portas e obtive toda a espécie de receção. Desde pessoas conscientes de que este património não é valorizado como tal, que são vistos como elementos velhos que, com sorte, podem ser vendidos, até alguns receando que eu levasse os objetos e para serem vendidos! Mas também houve quem dissesse ‘finamente alguém que pega em nós’, em nós através dos nossos bens, convidando-me a entrar, dando-me inclusivamente a chave”.

Sente-se orgulhosa desse apreço, dessa forma de confiança, entregando-lhe temporariamente a chave de duas das associações eborenses. “A chave carrega um simbolismo enorme, porque significa a entrada, mas também a saída, a abertura da associação ao exterior”, afirma a investigadora, assegurando que, pelo menos na sua opinião, “não existe futuro para estes grémios, se não forem abertos, se não efetuarem eventos com acesso livre para quem lhes é de fora”.

Na origem da ideia está obviamente Maria Zozaya, investigadora do Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades da Universidade do Espírito Santo, vinda para Évora há mais de 10 anos.

Esta exposição tem merecido a atenção de todos, tanto locais como estrangeiros, ou residentes de outros lugares do Alentejo, como “um senhor de Reguengos de Monsaraz, que veio a Évora propositadamente para visitar esta mostra e me felicitou, por ver recordações dos tempos de vida dos seus pais e avós”, confidencia, com visível emoção.

Por ali também se encontravam uns casais de turistas norte-americanos, olhando e trocando entre si animadas impressões. “Aproximei-me deles e disseram-me que isto é memória viva, [através da qual] podemos detetar os passos, as escolhas e afirmações de uma ou duas gerações anteriores à nossa”. E acrescentaram que, também no seu país, “há estes testemunhos, muito idênticos e muito ricos”.

ESTUDAR A HISTÓRIA E “TUDO À VOLTA”

Desde que recebeu a sua primeira bolsa de investigação, em Madrid, em 1988, Maria Zozaya dedicou-se a estudar este género de associações, iniciando-se pelo Casino de Madrid, a maior organização associativa espanhola deste género. Com vários estudos publicados sobre este tema, explica que no país vizinho se chama casino ao que por cá se chamava clube.

“A história cultural, a antropologia e a sociologia são áreas do meu interesse e, aproveitando esta oportunidade de estar em Évora, levou-me a contactar [as sociedades] e analisá-las de forma diferente. Entrar nas suas sedes, ver os objetos simbólicos, mobiliário, tudo aquilo que nunca foi estudado, porque até aqui, tal como em Espanha, apenas se estudavam os documentos escritos, os estatutos e normas. Contudo, raramente se estuda tudo o resto em redor, e que conta a história real dos associados e suas vidas associativas”.

“Estas associações”, sublinha Maria Zozaya, “têm um carácter de exclusividade e um perfil de elite”, embora seja necessário algum “cuidado” pois, por elite “nem sempre se deve ter em consideração o ponto de vista de classe social, pois ele funciona sobretudo, na qualidade de quem está e de quem é admitido. Por exemplo, na Sociedade Operária Joaquim António d’Aguiar só poderia entrar quem fosse operário. Nos estatutos isso está escrito”.

No século XIX separa-se muito a esfera pública e privada. Ou seja, a esfera privada é o lar, a família e os filhos, e esse mundo está quasi reservado à mulher. Por outro lado, a esfera pública, que abrange a administração, os negócios, o aparelho governativo, é na totalidade destinada aos homens.

“Como tal”, prossegue, “isso espelha-se nas associações, onde as mulheres não entram. Mas há momentos de exceção, como os bailes, refeições festivas, o teatro, alguns jogos e festas. E, nessa altura, as mulheres vêm representar a excelência do seu papel no privado”. Estão presentes como esposas, mães ou filhas dos respetivos homens, mostrando-se como são “exemplares”, quer na forma de vestir e manter-se, quer nas conversas e comida que tragam de casa, para a festa.

A investigadora elucida que os “inúmeros convites que ainda subsistem, e isto é transversal a todas as associações eborenses, [demonstram que] só poderiam, nessa ocasião, aceitar-se mulheres que fossem familiares dos sócios”.

Estes grémios associativos eram o reflexo da sociedade em si. Os matrimónios eram de conveniência, as premissas do amor romântico só nesse século XIX começam a florir, portanto os casamentos eram uniões de interesse económico, social ou apenas de amizade entre os pais dos futuros noivos. Era essencial que, quando ocasionalmente vinham as mulheres às sociedades, estas fossem a confirmação da imagem que o homem mantinha no seio associativo.

MAÇONARIA PRESENTE

Tendo dedicado a sua carreira a pesquisar estes grémios, Maria Zozaya afirma que muitas vezes a Maçonaria está na origem de muitos deles. “Não digo que as pessoas envolvidas fossem maçons”. No entanto, em Espanha, em Portugal e por toda a Europa, os nomes, as referências de valores, os princípios sobressaindo dos grupos liberais, que eram na época vitoriosos no confronto com os absolutistas, é uma evidência do seu vínculo à Maçonaria. “Os símbolos como as imagens, são literalmente transpostos”.

No local, a historiadora espanhola exemplifica: “Na Sociedade Harmonia Eborense, a lira e a harmonia, tal como as pautas e música, são alvo de relevo em textos escritos antecedendo dos estatutos, nos quais é indicado que entre os sócios deve imperar essa harmonia e essa fraternidade. A Sociedade Operária Joaquim António de Aguiar tem ainda as representações maçónicas no seu símbolo. Um antigo carimbo do Círculo Eborense mostra duas mãos juntas, apertadas simbolizando a união da forma pre- sente nos quadros maçons”.

Consciente das suscetibilidades, defende-se: “Não quero dizer que as pessoas envolvidas fossem, ou não, maçons, mas os princípios gerais daquela ordem estavam bem enraizados na origem de muitas destas associações”.

Sabe-se aliás que muitas delas tinham, e por vezes ainda têm, uma outra função. Era a de “filtrar” pessoas que pudessem ter perfil para serem convidadas a ingressar na Maçonaria. O que significa que eram utilizadas coletividades como estas, sem mesmo que as suas direções o soubessem, para conhecer e aprofundar a possibilidade de endereçar convite a entrarem naquela via iniciática, mais oculta. Exemplos bem conhecidos foram a criação nos Estados Unidos do Rotary Internacional e do Lyons Clubs International, que posteriormente se expandiram pelo mundo.

Com origem em Inglaterra e na França, estas estratégias floresceram nos finais do século XVIII e pelo XIX adentro. Ora essa é a “época” do reinado de D. Maria I, filha mais velha do rei D. José, uma época em que, por motivos políticos, “muitos [maçons] foram exilados” para França e para Inglaterra. “Quando lá chegam”, prossegue Maria Zozaya, “são naturalmente inseridos em associações do género”, onde lhes é “oferecida” uma intelectualidade moderna e revolucionária.

“Uma vez regressados a Portugal, ou a Espanha, trazem esses ideias e incorporam-nas através destas comunidades associativas”. O simples termo “clube” remete diretamente para o jacobinismo francês, afirmando noções de igualitarismo, de fraternidade e de patriotismo republicano. 

A AMBIÇÃO DA ITINERÂNCIA

A exposição patente na Biblioteca Pública de Évora tem o objetivo de ser itinerante. Está disponível para circular e poder acolher elementos novos, das associações onde venha a ser exibida. Segundo a sua curadora, pode ser apresentada em Lisboa, na Amareleja ou em Córdova. A paixão de Maria Zozaya pela história das coletividades é tanta, que todos os dias se disponibiliza para visitas guiadas, a quem o deseje. Ao contrário de muitos dos associados, no geral, olha para o futuro destes grémios com esperança. “Não se podem fechar sobre si mesmas”. Têm de estar abertas e ter também cuidado com os “amigos do alheio”. Sendo associações privadas é natural que tenham “receio”. Contudo, sublinha, seria importante permitirem que, “apesar das diferenças e porventura [das] fraturas que tenham tido em século e meio de existência, possam hoje estar mais unidas, guardando as suas singularidades, mas protegendo-se entre elas”.

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