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Estremoz esteve “no centro da resistência” da Restauração

Luís Godinho texto | Gonçalo Figueiredo fotografia

Foram mais de 27 anos de guerra para afirmar a independência portuguesa no século XVII. Neste período, em particular nos últimos seis anos de conflito, Estremoz “esteve no centro da resistência ao invasor”, lembra a historiadora Teresa Fonseca, autora do livro “Estremoz na Guerra da Restauração (1641-1668), agora publicado.

Doutorada em História das Ideias Políticas pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa e autora de diversas publicações sobre história moderna e contemporânea, Teresa Fonseca refere que Estremoz chegou ao fim do conflito “destruído e assolado miseravelmente”, conforme se lê na ata de sessões da Câmara relativa ao dia 10 de janeiro de 1668, tendo necessitado “de muitos anos para recuperar de tão profunda devastação e do sofrimento causado pela perda de muitos habitantes, caídos nos campos de batalha, fustigados pelas epidemias ou evadidos para longe do epicentro do conflito, provavelmente depois de tudo terem perdido”.

Ainda assim, adianta, os militares portugueses e estrangeiros que aqui se radicaram neste período e criaram “raízes”, através de casamentos e do nascimento dos filhos, “contribuíram para a longa, difícil, mas certamente esperançosa recuperação”.

Tendo como fonte os arquivos das paróquias de Santa Maria do Castelo e Santiago, ainda que incompletos, a historiadora contabilizou 128 casamentos com a presença de militares, na sua maioria padrinhos. Houve também, pelo menos, 17 casamentos em que o noivo desempenhava funções militares (entre os quais, 11 soldados e três capitães).

“O soldado pago devia, em princípio ser solteiro. Mas a longa duração da guerra acabou por converter o seu casamento numa prática comum nas terras de fronteira, como se comprova pelo exemplo de Estremoz”, escreve Teresa Fonseca, acrescentando que as uniões matrimoniais passaram até a ser “incentivadas” tanto pela Igreja como pela hierarquia militar. Além disso, “a união com uma mulher da terra poderia também representar, para o soldado, uma melhoria das suas condições de vida”, pois, além de um lar, o casamento proporcionava-lhe “outros meios de subsistência, que completassem o seu magro salário, sempre pago com atraso”. 

Se a estas duas paróquias se somar a de Santo André (da qual não existem os registos de casamentos), “de longe a mais populosa” do concelho de Estremoz, constata-se a existência de 53 batismos, entre 1641 e 1668, em que o pai pertencia ao exército, tendo os militares participado, como padrinhos, em 415 batizados. Entre os vários casos que a historiadora refere estão os dos soldados Manuel de Lemos, que em 1669 “batizou um filho natural, chamado Luís, pois não era casado com a mãe, Maria Rastolha” ou o do capitão João Fernandes Marques que também batizou um “filho natural”, chamado Cristóvão, sem que fosse casado com a mãe do recém-nascido. “Se nestes casos os respetivos pais assumiram a paternidade, a maior parte das crianças expostas ou das quais conhecemos apenas a mãe, seriam na maioria dos casos também filhas ilegítimas de militares. A suspeita acentua-se quando os padrinhos destes meninos e meninas são elementos do exército, o que sucede frequentemente nas três paróquias”.

PREPARAÇÃO PARA A GUERRA

Quando, a 1 de dezembro de 1640, foi proclamada a Restauração da Independência portuguesa, pondo fim ao reinado de Filipe III, de Espanha, o país preparou-se para a guerra. E a praça forte de Estremoz, lembra a autora, “embora mais afastada da linha fronteiriça, representava um ponto defensivo de grande importância”, não só por se encontrar a meio caminho entre Lisboa e Badajoz, mas também porque a sua perda “dificultaria” a defesa de Elvas, Campo Maior, Olivença e Juromenha.

Assim, Estremoz passou a ser sede de uma das oito comarcas militares do Alentejo – nalguns períodos seria, igualmente, capital militar de toda a província -, tendo Jerónimo de Melo de Castro, o seu primeiro governador, organizado “um regimento de milícias” com seis companhias e Estremoz e outras quatro colocadas em Évora-Monte, Redondo, Sousel e Vimieiro, além de “uma companhia de auxiliares de cavalaria na sede do concelho e duas companhias de éguas, nas zonas rurais”. 

A que se somavam 12 companhias de ordenanças. Um “exército” formado por “combatentes feitos à pressa e não profissionais”, que era necessário treinar para a defesa do reino. “Estão mui faltos de disciplina, e são uns poucos de rapazes, e outros homens velhos que toda a vida cavaram com uma enxada”, resumia Martim Afonso de Melo, o governador militar do Alentejo. 

À preparação das tropas juntavam-se outras preocupações, como a necessidade de melhorar as estruturas de defesa, o que implicava investimentos avultados. As receitas arrecadas através da cobrança do real d’água, imposto que inicia sobre a carne, o peixe e o vinho, destinaram-se à reparação de muralhas. 

Os trabalhos de “fortificação do recinto do castelo” iniciaram-se logo em 1641, consistindo “na edificação de pequenos baluartes adossados à cintura da muralha medieval”, a que se acrescentaram posteriormente “baluartes no bairro de Santiago, com o intuito de converter em cidadela todo o núcleo medieval”. O problema é que o dinheiro não chegava. Por um lado, porque boa parte do imposto estava a servir para obras defensivas em localidades mais próximas da fronteira. Por outro porque as trincheiras da, então, vila de Estremoz apresentavam-se “arruinadas em muitos sítios”, tendo sido proposta e aceite a cobrança de um novo imposto. Passados 20 anos, em 1661, o então governador militar alertava o rei para a iminente paragem das obras “por falta de dinheiro”.

ENFIM, A GUERRA

Em “Estremoz na Guerra da Restauração (1641-1668)”, editado pela Húmus, a historiadora Teresa Fonseca analisa em pormenor a participação dos estremocenses no conflito, sendo que era aqui que se concentrava o arsenal de toda a província, tendo sido inclusivamente criada uma fábrica de pólvora. “Além de armas e munições, também se concentravam em Estremoz tropa, carruagens, bestas de carga, animais de tração, forragens para o gado, cereais e outros bens alimentares (…) fazendo-se a partir daqui a distribuição para outras praças, por esta ser particularmente espaçosa”.

A vila esteve na iminências de ser invadida por diversas ocasiões, como em 1657 e 1658 quando, temendo um cerco, o governador da praça, Gabriel de Castro Barbosa, ordenou a recolha de toda a lenha e provisões para o interior do castelo. A situação “mais perigosa” ocorreu, no entanto, em maio 1662, quando D. João de Áustria, filho do deposto rei D. Filipe III, chegou às “portas” do castelo, depois de ter arrasado Vila Boim. “Atento às manobras do duque de S. German, o general anglo-alemão [Friedrich Schomberg] desenhou ‘com suma brevidade’ no outeiro de Santa Bárbara, nas imediações da vila, um quartel capaz de alojar os milhares de combatentes do exército luso”, edificado em poucas horas.

Conta a historiadora que pelas 10h00 do dia 12 de maio, mal avistaram o quartel, as tropas espanholas começaram a bombardeá-lo. Mas no interior, “ao mesmo tempo que se continuava a trabalhar nas trincheiras, sem interrupções, ripostava-se com muito fogo, o qual provocou ‘considerável dano’ no campo adversário”, obrigando o exército liderado por D. João de Áustria a recuar para fora do alcance da artilharia portuguesa. “Então Schomberg foi-lhe no encalço com cinco batalhões, dois dos quais de combatentes franceses, e atacou-o pela retaguarda, tendo-lhe tomado 30 cavalos”, mas não o impedindo de tomar Borba, depois Veiros e Monforte, entre outras praças. No ano seguinte, D. João de Áustria voltou a Estremoz, mas achando a cidade ainda “com mais defesas” prosseguiu em direção a Évora, tomando esta cidade.

A autora lembra que as guarnições da praça de Estremoz “participaram em todas as fases do conflito desenroladas em território alentejano, além de escaramuças de variável dimensão do outro lado da fronteira, tendo, em vários destes socorros, contribuído com mais de 1000 homens, recrutados nas 12 companhias de ordenanças”. Foi daqui, por exemplo, que no dia 11 de janeiro de 1659 partiu um “grande exército” que “protagonizaria uma das páginas mais gloriosas da história militar portuguesa, ao derrotar as tropas inimigas na batalha das Linhas de Elvas”.

As batalhas do Ameixial (1663) e de Montes (1665) Claros foram outros marcos decisivos para a consolidação da independência portuguesa. Sobre a primeira, Teresa Fonseca conta ter saído de Estremoz um exército de 11000 infantes pagos e auxiliares, 3000 cavalos e 15 peças de artilharia, comandando por D. Sancho Manuel de Vilhena, com a finalidade de prestar auxílio a Évora. Depois de em Évora-Monte ter sido recebida a notícia da rendição da cidade, o exército português decidiu marchar ao encontro de D. João de Áustria, que “retrocederam com o grosso do seu exército para organizar a retaguarda”. As tropas encontram-se nos campos do Ameixial, entre Estremoz e Cano. Vitorioso, o exército português colocou depois cerro a Évora, acabando por libertar a cidade.

Quanto a Montes Claros, “a última grande batalha da Guerra da Restauração”, a historiadora recorda que “o marquês de Marialva, à frente de um exército de 20.500 homens, mais uma vez saído de Estremoz, enfrentou os adversários numa longa e dura batalha que durou oito horas e redundou numa completa derrota para os espanhóis”, que contabilizaram cerca de 4000 mortos e 6000 prisioneiros.

A “FRIALDADE” DA NOITE

Mau grado a alegria das vitórias no campo de batalha, nestes anos, sublinha Teresa Fonseca, no Alentejo e em Estremoz “viveram-se anos de devastação, terror, exaustação, doença, morte e miséria”, sendo que nem os soldados escapavam, por vezes, a condições miseráveis, “muitas vezes rotos e descalços, sem comida e sem soldo”. Não espanta, por isso, que “para matar a fome”, praticassem “furtos em hortas e pomares da vizinhança dos quartéis” ou recorressem a expedientes como a venda de rações destinadas aos cavalos do exército, o que valeu a alguns militares da praça de Estremoz, em 1651, a ameaça “de açoites”.

As doenças eram também muito comuns, com o marquês de Marialva a queixar-se, em 1662, um ano antes da Batalha do Ameixial, da existência, entre Elvas e Estremoz, de mais de 2000 infantes doentes, “com sezões e catarros” que atribuía, entre outras causas, à “frialdade da noite, que é igual à quentura do dia” e ao facto de “andarem rotos, descalços e sem esperanças de se lhes fazerem uma pequena paga”.

O “ABOLETAMENTO” DE MILHARES DE COMBATENTES

“Em tempo de guerra”, escreve Teresa Fonseca, “um dos mais graves problemas enfrentados pelas câmaras e pelas populações era o dos aboletamentos de milhares de combatentes, com toda a série de prejuízos morais e materiais que isso implicava”. Era “ingrata” a missão de “aposentador”, normalmente delegada num morador idóneo, como o comprova o pedido de escusa feito em 1647 por um tal de Manuel Jorge, alegando que os “contínuos alojamentos dos soldados de passagem” por Estremoz “lhe ocupavam o tempo todo”. Em acampamentos improvisados, “em alguns, poucos quartéis e sobretudo em casas particulares”, a vila albergou “exércitos de milhares de homens”, sublinha a autora de “Estremoz na Guerra da Restauração (1641-1668). Em 1662, “massacrados com os repetidos alojamentos”, clero, nobreza e povo da vila reúnem-se em assembleia e decidem “pagar mais um imposto de dois reais sobre a carne, o peixe e o vinho, de modo a acelerar-se a construção de quartéis”. Sucede que a falta de mão-de-obra e de empreiteiros levou a um atraso sistemático das obras. E os moradores, “apesar de continuarem a pagar” o novo imposto, continuaram “a viver com [os] soldados” dentro de casa.

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