PUBLICIDADE

Escola de mármore de Estremoz foi a mais importante do país

Luís Godinho texto | Gonçalo Figueiredo fotografia

No século XVI foram dezenas de pedreiros a trabalhar a pedra mármore à porta de suas casas, em Estremoz, sobretudo na freguesia de Santo André… uma verdadeira escola da qual “saíram” peças tão importantes como o monumental túmulo de D. Jorge de Melo, na igreja conventual de São Bernardo de Portalegre, ou a píxide do Chafariz das Portas de Moura, em Évora.

Autor da tese de doutoramento “Escultura ao romano no Alentejo do Mármore, 1521-1547”, desenvolvida na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Francisco Bilou defende a existência, em Estremoz, de uma “escola de cantaria artística” que funcionou durante todo o século XVI e de onde saíram algumas das mais notáveis peças da “escultura arquitetónica” do Alentejo.

“Toda a dinâmica artística na transformação do mármore está concentrada, ao contrário do que até aqui se julgava, na própria pedreira de mármore e na sua capacidade criadora, como espaço de saber e aprendizagem. Na verdade, uma verdadeira escola de cantaria artística a que muito deve o melhor património artístico alentejano”, defende o historiador, em entrevista exclusiva.

Em que medida podemos falar na existência de uma escola de cantaria na cidade de Estremoz no século XVI? E que tipo de “escola” era?

No contexto da prática escultórica do Renascimento, optamos pela designação de “escola” por encontrarmos em Estremoz duas importantes realidades complementares – um apreciável número de oficiais em atividade e uma documentada transmissão de saberes entre mestres e aprendizes. Não era uma escola formal, mas um espaço continuado de partilha de conhecimentos (saberes e técnicas, em especial) em torno da exploração artística do mármore, extraído das bancadas locais desde a época romana. 

Trata-se de um dado novo?

Sim. Esta constatação, que resulta também da leitura de dois raríssimos livros de “ementas” camarárias datados no intervalo de 1554 a 1560. Estes dois manuscritos dão-nos uma visão de algo inédito no país e de extrema importância para a História da Arte portuguesa, em particular o modo como se fundamentou o surto de obras renascentistas no “Alentejo do mármore”, designação nossa que corresponde sensivelmente aos atuais distritos de Évora e Portalegre.  

No seu trabalho enumera um conjunto alargado de pedreiros a trabalhar o mármore de Estremoz nesse período. Entre eles destaca Pedro Gomes. Porquê?

A descoberta de Pero Gomes como escultor de fama foi uma agradável surpresa. Conhecíamo-lo, desde Sousa Viterbo, como empreiteiro da igreja de Santa Maria do Castelo de Estremoz e, com dúvida, como pedreiro em obra de pedraria no Convento de São Bento de Avis. Acontece, porém, que ele está documentado em 1542 como o responsável pela sepultura do Bispo da Guarda, isto é, o monumental túmulo de D. Jorge de Melo da igreja conventual de São Bernardo de Portalegre, a maior obra do género do país nesta época. A este protagonismo, já de si inesperado, juntam-se novos documentos que o dão a trabalhar no refeitório e cozinha do dito Convento de Avis e nas obras da igreja de São Bernardo de Portalegre, a que acresce obra sua não documentada, mas que repete os estilemas por si usados, casos do Chafariz da Fontinha em Alter do Chão e do portal da Igreja de Nossa do Espinheiro, em Évora. Um grande mestre marmorário, portanto, que competiu no mercado artístico do mármore alentejano com os franceses Nicolau Chanterene e Francisco Lorete.

Mas houve outros, claro…

Destaco claramente João Alvares, de alcunha “o Cabicalvo” (o “Careca”). Em julho de 1554 requeria à câmara de Estremoz que lhe dessem licença para ter mais quatro ou cinco carretas para puder transportar a pedraria que havia feito para os “Estudos” que o Cardeal mandava então fazer em Évora. Trata-se, nem mais nem menos, do que as colunas do Pátio dos Gerais do Colégio do Espírito Santo (Universidade de Évora), o que dá bem nota da qualidade e importância deste pedreiro. Não é de estranhar que, logo terminada esta obra, ele se documente em 1559 na qualidade de empreiteiro da matriz de Veiros. Um mestre de primeira plano no panorama arquitetónico regional da segunda metade do século XVI.

A existência de muitos oficiais com o nome André estará relacionada com o facto de terem nascido na freguesia de Santo André? Há provas históricas que sustentem esta conclusão?

É um tópico conhecido de quem estuda os registos paroquiais desta época. Por norma o nome próprio à hora do batismo resulta, muitas vezes, ou de um qualquer santo cultuado nesse dia, ou de particular devoção do padrinho, ou do orago da igreja paroquial onde se realiza a cerimónia. Santo André era a paróquia socialmente mais dinâmica de Estremoz, pois coincidia com a zona arrabaldina do Rossio onde vivia uma população mercantil, mas também muito ligada aos ofícios mecânicos. Não é de estranhar, pois, um predomínio onomástico dos “Andrés”, seja como nome próprio, seja até como apelido, e não só associado a pedreiros.

São pessoas que trabalhavam à porta de casa… esse é, pelo menos para mim, um dado surpreendente. Como chegou a esta conclusão?

É de facto um dado surpreendente e inédito à escala nacional. Uma vez mais resultante da leitura dos mencionados dois livros municipais de “ementas” (com raiz no latim mens, “juízo”, “razão”), que afortunadamente sobreviveram no arquivo camarário. Nestes dois livros, verdadeiros “diários” dos assuntos levados a reunião de câmara e  respetivo “despacho”, colhem-se abundantes pedidos de pedreiros para trabalhar a pedra à porta de suas casas. A reposta dos vereadores é habitualmente a mesma: aprovam com a condição consabida de os requerentes não ocuparem a rua mais do que uma vara de largura, limparem ao final do dia a zona de trabalho e, caso as carretas estragarem as calçadas no transporte da pedra, pagarem as custas do arranjo.  

Há um trabalho prolífico de mármore de Estremoz no século XIV. Parece desaparecer no XV. E regressa em força no século XVI. São conhecidos os motivos que explicam este abandono do mármore naquele período de tempo?

É um dos grandes enigmas este decréscimo brusco da produção artística em mármore no século XVI, sobretudo depois de um século anterior de tão exuberante realização obreira. Este colapso da produção deve-se, naturalmente, à enorme quebra de encomendas, seja por razões económicas, demográficas ou um combinado de fatores que nos continua a escapar. O certo é que as encomendas do século XV preferem o chamado “alabastro inglês”, o calcário de ançã e o mármore de Génova (Luni-Carrara, mais especificamente). O mármore alentejano só começa a recuperar o estatuto de material nobre no final do reinado de D. Manuel I. Facto que nos leva a propor que o renascimento da escultura marmórea tardou na região na justa medida em que tardou a recuperação do mármore alentejano como sinónimo material da cultura antiga.

Outro dado surpreendente é que muitos destes pedreiros eram também escultores; ou seja, no fundo são eles os autores das peças imaginadas pelos “arquitectos” encarregados do projeto. Foi de facto assim? Como chegou a essa conclusão?

Quando se observa, por exemplo, o túmulo de D. Jorge de Melo na igreja de São Bernardo de Portalegre, a primeira nota a considerar é a de que se trata de um projeto coletivo onde colaborou talvez um arquiteto no desenho geral da peça, e pelo menos dois escultores de desigual valia técnica, um excelente, talvez contratado para o efeito, e outro mediano. Este mediano pode ser Pero Gomes, que é um caso típico de um pedreiro que evolui para a figuração escultórica, decerto por gosto e oportunidade de trabalho. O que não cabe dúvida é que Pero Gomes é o responsável pela empreitada arquitetónica e escultórica, bem como pelo transporte e colocação da pedra lavrada, o que significa que lhe coube escolher a equipa, contratar oficiais para trabalhos de maior apuro artístico, seguindo um projeto geral que por certo lhe forneceu o encomendador. Outro caso de estudo é a conhecida fonte-chafariz da Porta de Moura, em Évora, traça de 1556 e indiscutivelmente do arquiteto Diogo de Torrava (à época mestre das obras da Comarca do Alentejo). Mas não foi decerto Torralva que esculpiu a bela píxide, mas sim pedreiros qualificados de Estremoz e numa bancada de mármore local. 

São peças de uma riqueza artística e técnica por vezes assinalável…

Surpreendentes, na verdade. Qualquer uma das obras atribuídas a Pero Gomes e à sua equipa tem uma grande qualidade plástica, embora repetindo modelos gerais que o Renascimento generalizou na encomenda. Se à obra de Gomes lhe juntarmos as realizações escultóricas de Nicolau Chanterene, em Évora, e a de Francisco Loreto em Arronches, Vila Viçosa e Olivença, bem podemos afirmar que este património artístico lavrado no mármore de Estremoz é dos mais importantes e originais do país.

A escola extinguiu-se? É possível determinar esse momento e que circunstâncias o explicam?

A “escola” não se extinguiu, no sentido em que a transformação escultórica foi permanecendo, com mais o menos fulgor, e sempre de acordo com a própria capacidade socioeconómica do país. Se durante a Guerra da Restauração a prioridade de defesa canalizou o saber técnico e artístico do mármore para uma função mais utilitária e militarista, já o barroco quinto joanino recuperou, de algum modo, as artes marmóreas do século XVI. Bom exemplo, a notável obra da capela-mor da Sé de Évora onde, aliás, se documenta pela primeira vez (ainda que fosse comum antes disso) o uso da serra para seccionar os blocos de pedra.

O que é que esta revelação pode significar em termos de conhecimento histórico deste setor e que impactos poderá ter, por exemplo, a nível da promoção do mármore, turística mas não só….

Julgo que este acréscimo de saber potencia desde logo a importância histórica e artística da escultura arquitetónica na região alentejana. Tal património, sendo conhecido, carecia contudo de um enquadramento estilístico e autoral mais pormenorizado, o que estamos hoje em condições de assegurar. O facto de sabermos agora que o melhor deste património artístico se deve a três dos melhores escultores portugueses do século XVI – Nicolau Chanterene, Francisco Loreto e Pero Gomes – tem um significado também muito importante ao nível da História de Arte Portuguesa. Mas, sobretudo, é hoje mais seguro afirmar que toda a dinâmica artística na transformação do mármore está concentrada, ao contrário do que até aqui se julgava, na própria pedreira de mármore e na sua capacidade criadora, como espaço de saber e aprendizagem. Na verdade, uma verdadeira “escola de cantaria artística” a que muito deve o melhor património artístico alentejano.

“ROTEIRO ARTÍSTICO DA PEDRA BRANCA DE ESTREMOZ.

DO ROMANO AO BARROCO”

É possível traçar um “roteiro” sobre os principais trabalhos em mármore feitos pela escola de Estremoz? Até onde nos leva?

É possível e desejável, e neste momento a Câmara de Estremoz já equaciona essa possibilidade a nível local. Sem prejuízo de um dos roteiros ser mais de âmbito urbano em torno do património escultórico em mármore, observável em espaços públicos e musealizados, importaria desenvolver outro à escala do Alto Alentejo, de modo a integrar as excelentes peças escultóricas de Portalegre, Arronches, Elvas, Olivença e Vila Viçosa. O que não dispensará um olhar mais vasto sobre o conjunto, caso, por exemplo, a Entidade de Turismo Regional de Turismo acolhesse uma tal ideia – a criação de um “roteiro artístico da pedra branca de Estremoz. Do Romano ao Barroco”, tendo por base Évora e as várias pequenas capitais regionais do mármore.

Calculo que exista ainda muito trabalho a fazer neste levantamento….

O número de peças renascentistas no espaço geográfico do mármore alentejano está, no essencial, contabilizado e o seu estudo está em fase de conclusão. O que importa fazer, e que transcende a natureza deste estudo focado nos aspetos históricos culturais e artístico é, em especial, a análise arquiométrica do mármore para precisar, com o máximo rigor, a proveniência da pedra ao nível da bancada, bem como a razão da escolha face às características do grão, textura e cor. Para consumar este desígnio seria importante mobilizar projetos de investigação académica. Por exemplo provindos ou associados ao Laboratório Hércules da Universidade de Évora, organismo de dimensão internacional que tem, ao presente, não só capacidade como a tecnologia necessária para o fazer.

Partilhar artigo:

FIQUE LIGADO

PUBLICIDADE

PUBLICIDADE

© 2024 SUDOESTE Portugal. Todos os direitos reservados.

Desenvolvido por WebTech.