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Do futuro de Vergílio Ferreira ao passado de Cabrita Nascimento

Luís Godinho texto | Gonçalo Figueiredo fotografia

De como o reencontro de um fotógrafo com a cidade onde viveu se cruza com as palavras de Vergílio Ferreira. O registo de uma Évora “existencialista” pelo olhar de Cabrita Nascimento.

“Évora, escreveu Vergílio Ferreira em 1958, “é uma cidade como uma ermida”. Um território para onde convergem “os caminhos da planície como o rasto da esperança dos homens”. E uma ermida pois “o que a habita é o silêncio dos séculos, do descampado em redor”. 

Esse descampado, referido há 64 anos por Vergílio Ferreira em “Carta ao Futuro”, já não existe, deu lugar à construção de edifícios, cada vez mais edifícios, de bairros e de estradas que já nem novos são. Mesmo o próprio “coração” da cidade, habitado pelo escritor quando aqui deu aulas, sofreu transformações, tanto na sua configuração como nas vivências de quem o habita e de quem o visita.

Mas dessa Évora, digamos, “existencialista”, descrita nesses finais da década de 50, há imagens que persistem. “Conheço os seus espetros, a vertigem das eras, a noite medieva mora ainda nas ruas que se escondem pelos cantos, nas pedras cor do tempo ouço um atropelo de vozes seculares”, escreveu Vergílio Ferreira em palavras que serviram de inspiração para que o fotógrafo Cabrita Nascimento voltasse a percorrer as ruas de uma cidade que “ignora a exatidão do presente”, pontuando a sua pesquisa pela documentação da “distância infinita entre a aparição da verdade”.

O resultado dessa “peregrinação” pode ser visto na exposição “Évora Carta ao Futuro”, patente na cisterna e no corredor da Sala das Belas Artes da Universidade de Évora, por sinal o edifício onde Vergílio Ferreira deu aulas entre 1945 e 1959. Já iremos ao encontro do autor da exposição. Por agora centremo-nos nas palavras de Manuel Madeira Piçarra, fundador e diretor do “Diário do Sul”, ele que foi aluno de Vergílio Ferreira, já lá vão 70 anos.

“Fiquei a dever-lhe preciosos ensinamentos na literatura e recebi dele provas de estima, sublinhadas por saber que eu era um estudante muito pobre envolvido na capa e batina que alguém me oferecera”, escreve Manuel Madeira Piçarra num texto incluído no catálogo da exposição, evocando o escritor como “uma figura de mestre, que ensinava com larga abundância de exemplo e com diálogo aberto” com os alunos.

“Gostava da sua escola e da cidade de Évora, onde tinha um núcleo de amizades em que se destacava o médico Alberto Silva, Francisco José Caeiro, o diretor da Biblioteca Pública de Évora, dr.º Armando Nobre Gusmão, notável poeta, o eng.º Reis Pereira e os pintores António Charrua e Henrique Ruivo. Vergílio Ferreira, pela sua postura, tinha uma particular auréola entre os seus colegas de ensino”, lembra o diretor do “Diário do Sul”.

Falando de memórias, e vendo-as como “pura expectativa de uma interrogação submersa”, esta exposição pode também ser descrita como um reencontro de Cabrita Nascimento com a cidade de Évora, onde se licenciou e onde viveu longos anos. “Évora continua a ser surpreendente. Tentei com este trabalho ter um olhar de dentro e de fora. Percorri muito a cidade quando cá vivi, fotografei-a bastante, mas consigo agora ter um distanciamento, vê-la de uma outra perspetiva e observar as transformações do espaço público”, diz o fotógrafo, sublinhando que cada geração tem uma perspetiva em relação ao património, “mais de conservação ou de destruição”, e que cidades como Évora “precisam de refletir sobre o que se preserva e o que se constrói, sobre o que se lega às gerações futuras”.

CRUZAMENTO DE MEMÓRIAS

Tal como na urbe da “Carta ao Futuro”, ainda é possível olhar as estrelas por entre as colunas do Templo Romano: “O espaço habitava a sua irrealidade, irradiava essa mão de pedra à sua infinitude. Suspenso de memória e de uma obscura interrogação, ali fiquei algum tempo, tocado dessa indistinta surpresa que é o halo do limiar da vida, a anunciação das origens”. Poderemos olhar pelos olhos de Vergílio Ferreira, mas poderemos também deixar-nos surpreender pelo olhar de Cabrita Nascimento, a dança de nuvens sobre o Templo, a fonte refletida na sua própria água ou o José Dias à porta do “Quarta-Feira”. É uma Évora do futuro de Vergílio e do passado de Cabrita Nascimento, cruzamento entre a “interrogação submersa” das memórias do escritor e do fotógrafo.

“Ao ler esse texto”, conta Cabrita Nascimento, “senti que poderia fazer uma nova pesquisa sobre Évora que fosse inspirada naquelas palavras e dar a ideia de uma Évora existencialista”. No fundo, “uma reflexão sobre o Património da Humanidade que pudesse contribuir para fixar um retrato da cidade contemporânea e que seja testemunho para as futuras gerações”. Trata-se, na sua perspetiva, de um “retrato atual, mas com uma carga existencialista e poética”. Daí a opção pelo preto e branco, por contrastes pouco elevados e por um “muito rigoroso” controlo da geometria e da estética, bem como da relação entre as pessoas e a cidade. Uma relação que também mudou ao longo dos anos.

“Há uma cada vez menor ocupação do espaço público pelo cidadão. As pessoas conviviam muito mais nas ruas, também os idosos, e esse comportamento começou a alterar-se ainda antes da pandemia. As pessoas ficam mais em casa. E também quis documentar isso com esta exposição”, acrescenta o fotógrafo, para quem “o que importa é ver. Ver com os olhos e com a alma, deixando descansar o coração”. 

Resultado de uma proposta de Cabrita Nascimento à Universidade de Évora, com o apoio da Câmara Municipal, a exposição “Évora Carta ao Futuro” está patente até dia 10 de junho, seguindo-se uma itinerância por cidades como Coimbra, Lisboa e Porto.

“MUITO MAIS QUE UM ROTEIRO VERGÍLIANO

Não se cingindo a um “roteiro vergíliano, procurando a redenção do que ficou preso no tempo verbal do passado”, a exposição “Carta ao Futuro” “é muito mais do que simples revisitação nostálgica”, refere o historiador de arte Francisco Bilou, classificando o trabalho de Cabrita Nascimento como um convite a “viajar pelo silêncio das formas” de que é feita a cidade. Uma Évora “vista em instantes poéticos, tantas vezes nascidos de uma subtil comensurabilidade de planos e de um cuidado equilíbrio de volumes”, através do qual o fotógrafo “foge ao cliché arquitetónico que impõe a disciplina da ortogonalidade”. Um trabalho artístico pautado por “muito racionalismo nos surpreendentes instantes poéticos”.

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