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Entre a horta e as memórias. Histórias de quem vive isolado

Vitorina Clímaco e Antónia Maria Queimado não tiveram vidas fáceis. Depois dos 80 anos, ainda tratam da horta e recusam deixar a casa onde vivem há dezenas de anos. Ainda que a vila fique longe.

Ana Luísa Delgado (texto) e Gonçalo Figueiredo (fotografia)

Vitorina Clímaco nasceu em Évora-Monte há 83 anos. “Nunca daqui abalei”. Há 50 que vive num monte, relativamente isolado, alvo de um patrulhamento especial por parte da GNR no âmbito do programa “Idosos em Segurança”. Acompanhamos a patrulha e batemos à porta de Vitorina.

“Não fui à escola. Comecei a trabalhar no campo com 10 anos e foi esse o meu ofício a vida toda, da apanha da azeitona à ceifa. É o que sempre fiz”. Casou há 65 anos, “fez agora no dia 31 de agosto”, morava ela na Junceira e ele na Faia. “Conhecemo-nos no trabalho no campo, era essa a nossa vida”.

Quis o destino que o casal não tivesse filhos. E que acabasse por se instalar no local onde os encontramos e que, por razões de segurança, não vamos identificar. “A casinha estava feita, mas a gente mandou-a amanhar para ficar ao nosso gosto”. O homem fará 92 anos em dezembro. São dois dos mais de nove mil idosos alentejanos que vivem isolados.

Este ano, lamenta Vitorina Clímaco, “já não apanhámos azeitona”, muito por culpa da doença de coração que a afeta. “Já fui operada por três vezes, tenho um ‘pacemaker’ e este ano decidi que já não ia à azeitona para ver se vivo um pouco mais. Antes da última operação passei mal, muito mal. Chamava a ambulância e ia para o Hospital de Évora, estava lá uns dias, era internada e depois queriam mandar-me embora para esperar em casa pelo dia da operação”. Acabou por ficar internada. Foi operada. Regressou ao monte. “Vivo bem e não me importo nada de aqui estar. Vivo melhor aqui do que se estivesse numa cidade”. Problemas, diz, “nunca tive, graças a Deus”. Já por ali rondou um indivíduo que andou a falar com um vizinho, a quem disse que era padre. Levantou suspeitas, mas a coisa ficou por aí. “A Guarda passa sempre por aqui, às vezes os jipes passam e não param, mas o senhor Paulo vem sempre aqui falar com a gente”. E isso marca a diferença.

O “senhor Paulo” é um dos militares da GNR cuja patrulha acompanhamos. Mesmo sem ter ido à apanha da azeitona, a idosa e o marido mantêm uma horta… galinhas, couve-flor, brócolos, algumas nabiças. “Olhe, tenho ali um repolho”, diz a idosa. Os espinafres já foram colhidos. “Ainda somos capazes de pôr ali qualquer coisita para comermos. Sempre é uma ajuda pois a reforma é muito pequenita”. Por “pequenita” entenda-se 300 e poucos euros mensais. “É com o que a gente se tem de governar”.

Quando os produtos da horta se acabam, ou surgem outras “precisões”, há que vir à vila. “Antes tínhamos uma carrinha, o meu marido conduzia e lá íamos a Évora-Monte. Eu nunca aprendi porque tinha medo. Mas agora, olhe, agora chamamos um carro de praça que me vem aqui buscar, faço as minhas comprinhas e depois vem-me cá trazer”, conta Vitorina Clímaco. O problema da mobilidade ficou resolvido com o táxi. Mas as compras, claro, “ficaram mais caras”.

É também este o recurso para ir ao centro de saúde ou à farmácia – “ainda agora fui levar as vacinas”. Ir para um lar é que está fora de questão. “Enquanto estiver assim não quero ir. E quando é preciso tenho a ajuda de uma sobrinha que vive aqui perto. Quando tenho de ficar no hospital ela vem e leva o tio, ele nunca fica sozinho”.

À medida que a conversa prossegue, aproxima-se a hora do almoço. “Hoje tenho cozido de grão”. Os conselhos da GNR repetem-se: em caso de necessidade há um número para o qual deve ligar. “Está ali colado no frigorífico. E tenho o portão sempre fechado à chave. A gente já conhece os carros que costumam passar por aqui”.

MAIS DE 40 ANOS A VIVER NO MONTE

Aos 81 anos, feitos em abril, Antónia Maria Queimado vive sozinha. Nasceu lá para os lados de São Miguel de Machede, nos Foros das Pombas, mas quis a vida que acabasse por se fixar por Évora-Monte. “Vim para cá aos 26 anos, para trabalhar. A minha vida tem sido sempre uma vida de trabalho. Olhe, sou uma mulher dos sete ofícios”, conta Antónia Maria, revelando que já “fez de tudo um pouco”, sobretudo trabalho no campo e como empregada doméstica. “Estive em casa de um senhor D. João de Noronha, sabe quem é? É dessa gente da casa real. Estive lá 10 anos como cozinheira”.

Casou-se muito nova, não mais de 16 anos. “Essa é uma história muito comprida”. Uma história que começa com a separação dos pais, tinha ela 10 anos. “Fiquei sozinha com o meu pai, depois fui buscar a minha irmã mais pequena, que já morreu. Ficámos sozinhos os três até ele se ter juntado com uma mulher, a mãe do marido”. Uma história comprida e nem sempre feliz. “Ali está ele, naquela fotografia, em cima da bicicleta, e naquela outra a tirar cortiça.

Mas às vezes queria guardar o corpo e trabalhar pouco”. Antónia Maria Queimado não esconde ter passado por dificuldades – “tive uma vida muito sofrida”. Mãe, avó e já bisavó – “o pequenino que está ali naquele retrato é o neto do meu filho” -, garante que estaria bem, apesar de sozinha e isolada, “não fossem os problemas provocados pela diabetes”.

O monte onde agora conversamos não foi o primeiro que habitou. “Morávamos ali naquele. Depois comprámos esta casinha e fomos amanhando as coisas conforme as nossas posses. Sou pobre, mas não devo nada a ninguém, portanto também sou rica”. Suportou os problemas – “o dinheiro que o meu marido ganhava era só para gastar” -, nunca se separou. “Adoeceu com cancro faz agora cinco anos. Fiz tudo o que pude por ele”.

Conta que desde essa altura passou a viver sozinha. “Não me sinto isolada, sempre vivi assim. Falo com toda a gente, mas não sou de andar na casa dos outros”. Acresce que a passagem regular da patrulha da GNR sempre lhe traz mais tranquilidade. “Às vezes até digo para mim mesma ‘olha, lá estão’, quando param o carro de noite, além ao pé daquela azinheira, para ficarem a fazer vigia”.

“Quer dizer”, prossegue a idosa, “eu não estou preocupada. Para lhe estar a dizer a verdade eu não estou preocupada por viver sozinha. Está também ali o vizinho… o maior receio é que posso adoecer e não ser capaz de telefonar para lado nenhum”. O filho também é uma visita regular. “Vive em São Pedro de Moel mas costuma vir todos os meses. Agora vem cá passar mais uns dias por causa da azeitona, temos que ir colher a azeitona. Chega no sábado”. À sua espera está uma escada nova, que Antónia Maria mandou comprar. “Ele quis que eu fosse para Évora-Monte morar, mas eu não quis deixar a minha casa. Tinha um desgosto que era uma coisa maluca. Aluguei lá uma casa, mas não podia lá estar. Passados cinco meses vim-me embora”.

Na vila, lembra, não havia a horta, ao contrário do que acontece no monte. “Semeio e colho e sempre sabemos aquilo que estamos a comer”. Como a sopa de grão com repolho acabada de fazer e que dará também para os próximos dias. Longe vai a memória dos tempos em que “queria comer um bocadinho de pão e nem isso tinha. No tempo das bolotas apanhava três ou quatro, descascava, raspava, metia numa lancheira e era o meu almoço. Pão quando havia, e algumas bolotas”.

Das lembranças desses tempos difíceis recorda ainda o colchão de palha em que o filho dormiu até aos seis anos. “Enchia uma saca de palha e tapava-o com umas mantas. Não podia ver o meu filho assim. Fui guardando algum dinheiro, pedi uma burra a uma mulherzinha que morava ali ao pé e fui a Évora-Monte comprar um divã à do senhor Chico para o gaiato se deitar”.

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