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Ensopado de borrego, herança árabe “à mesa” de Saramago 

Francisco Alvarenga texto

José Saramago chegou à vila de Lavre em 1976 no auge da Reforma Agrária. Nos meses que ali viveu, 22 anos antes de ser distinguido com o Prémio Nobel da Literatura, foi a Unidade Coletiva de Produção “Boa Esperança” que lhe custeou as despesas com alimentação e alojamento. No Lavre acompanhou o dia a dia dos trabalhadores rurais e encontrou inspiração para escrever um dos seus livros mais famosos, “Levantado do Chão”, no qual traça um retrato do Alentejo do século XX e das difíceis condições de vida de uma larga maioria da população rural. 

No livro há diversas referências à gastronomia regional, com o autor a ironizar a dado passo sobre a “rica vida” dos trabalhadores agrícolas durante os longos meses de inverno, quando as searas crescem. Uma vida marcada por “grandes banquetes e comezainas de cardos, catacuses e agriões, com uma cebolita de refogado, uns baguitos de arroz e um poucachinho de pão”. 

Nos dias de festa o ‘rancho’ era melhorado. “Levantado do Chão” conta a história do casamento de Manuel Espada com Gracinda Mau-Tempo, um “par bonito” que fez em Monte Lavre uma boda como não se via há anos: “Há vinho, ensopado de borrego, bolinhos de noiva, duas garrafas de abafado e também uns rojões bem apaladados, nada que farte, isto é casamento de gente pobre”.

A demora do padre Agamedes faz o “cheirinho do ensopado bulir no estômago”. Por isso, enquanto o padre não chega, enganemos a fome com uma viagem até à invasão muçulmana do século VIII depois de Cristo. Data dessa altura a receita do ensopado de borrego tal como hoje o conhecemos, sem a utilização de batata e que em certas zonas do Alentejo é denominada de borrego à pastor. A mesma receita que se encontra no livro Kitâb al-Tabîj, um manuscrito anónimo do século XIII traduzido para castelhano e publicado em 1965 por Huici de Miranda. 

Hoje em dia há diversas maneiras de confeccionar o ensopado de borrego, sendo que a diferença fundamental assenta na utilização, ou não, da batata, não restando dúvidas de que a receita árabe não a incluia pois apesar de ser cultivada há 8 mil anos nas regiões andinas só chegou à Europa no século XVI, trazida pelos espanhóis. O ensopado, esse, já era por cá confeccionado há pelo menos 700 anos: carne de borrego cortada em pedaços, refogada em azeite, cebola, alho, banha de porco e temperada com salsa, folhas de louro, pimenta preto e cravinho. Derretida a gordura junta-se água e vinho branco em quantidade suficiente para cozer a carne e sobrar algum caldo que se há de servir sobre fatias de pão duro. A carne deve provir de animais criados em extensivo, alimentados com pastagens, forragens, agostadouros (restolhos), bolota e lande.  

Chegado o padre Agamedes, é hora de começar o almoço em Monte Lavre, comendo-se “primeiro sofregamente, depois devagarinho, pois toda a gente sabia que não haveria muito mais que comer, e então muito juízo mostrariam fazendo render aquele ensopado”.

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