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Prémio Camões. João Barrento: e no princípio foi a luz e a cal

João Barrento, 83 anos, é o vencedor do Prémio Camões. Nascido em Alter do Chão, em plena II Guerra Mundial, recorda os “anos duros, de fome, desigualdade e repressão” que marcaram a sua infância.
Luís Godinho (texto) e Paulo Spranger (fotografia)

Autor de uma obra “relevante e singular”, na expressão do júri que lhe atribuiu o Prémio Camões, um dos mais importantes da língua portuguesa, João Barrento nasceu em Alter do Chão a 26 de abril de 1940. “No princípio era o mar”, escreveram os organizadores de “Encontros e Travessias – Homenagem a João Barrento”, numa alusão à intenção, manifestada na adolescência, de fazer carreira na Marinha. “A guerra colonial fê-lo abandonar o projeto, e do elemento líquido se fez forma e palavra”.

Em boa verdade, no princípio não terá sido o mar, antes “os anos da luz e da cal”, para utilizar palavras escritas pelo próprio João Barrento, cuja infância foi vivida “num Alentejo de artesãos e trabalhadores rurais, em anos duros, de fome, desigualdades e repressão”.

Desses primeiros 11 anos em Alter do Chão, antes de se tornar “cidadão do mundo”, deixa-nos um conjunto de memórias já publicadas por três vezes. “Crónica da Casa Futurante” começou por ser o título de um conjunto de textos escritos no seu blogue pessoal em setembro e outubro de 2007, reunidos seis anos depois numa crónica com o mesmo nome que constituiu o seu contributo para o primeiro número da revista “Delphica”. O ano passado, “Crónica da Casa Futurante e outras viagens no tempo” foi editado pela Mariposa Azual. Não mais de 150 exemplares. São desta edição as citações que se seguem.

“Recordo hoje, não os tempos de chumbo de uma Lisboa salazarenta que não via ainda nitidamente (nem de forma subtil como nos contos e romances de Maria Judite de Carvalho, que não conhecia nesses anos de liceu), não os anos do exílio voluntário na Europa do frio, mas o tempo da inocência feliz, quando o mundo não tem sombras e o corpo conhece apenas o júbilo da luz sobre a cal branca. Os anos da luz e da cal, das caiaduras ao anunciar-se mais uma Primavera. Para nós, nesses anos, só havia primaveras”.

Quando João Barrento nasceu a Europa encontrava-se em guerra. Em junho desse ano, as tropas de Hitler ocupavam a França. Os seus primeiros anos serão vividos sob a ameaça dessas nuvens. E, embora criança, há imagens que não esquece: “Os rostos ameaçadores e os capacetes de aço dos soldados nazis saltavam das páginas das revistas e invadiam os sonhos dos meus quatro, cinco anos, enquanto lá fora, no campo, se sobrevivia roubando azeitona e trocando as voltas à Guarda”.

O “banho sumário” na rua, ao final do dia, os grandes figos maduros no quintal do vizinho, as janelas do piso superior que apenas se abriam para pendurar as colchas à passagem de uma procissão, “talvez a de um Senhor dos Passos roxo e ensanguentado, aterrador, figura de um outro inferno onde os olhos do menino o viam conviver com o padre odiado”… o passar dos dias em Alter do Chão, há 80 anos, quando a burguesia rural expunha o “poder dinheiro” ao domingo de manhã, na missa rezada na igreja do Convento de Santo António.

“Os seus ícones mais visíveis: a chegada, de automóvel ou charrete, dos senhores e senhoras, poucos, ao adro onde brincávamos sem cuidar de rezas; as almofadas de família, em veludo vermelho, na primeira fila de bancos, ou a pose grave do gordo Caldeira ajoelhado no confessionário a desfiar pecados com que eu não sonhava”, escreve João Barrento, evocando um mundo “feito de contrastes e injustiças” mas que, “algum modo, estava em ordem – mesmo quando o padre, de maus fígados, tratava mal o povo e dava bofetadas no pessoal menor, mesmo nas tardes em que eu me encostava à parede na Rua dos Arcos para, com um misto de temor e inveja, deixar passar a charrete do senhor diretor da Coudelaria, com os seus luzidios cavalos lusitanos”.

O Grémio, um dos únicos sítios onde chegavam jornais, era por esses dias um “mítico lugar subversivo”, onde as “longas tardes” de domingo eram passadas a ouvir na rádio os relatos de hóquei em patins, numa época em que a seleção nacional foi quatro vezes consecutivas campeã do mundo (entre 1947 e 1950).

A ida para Lisboa ainda estava longe. A escola primária foi, toda ela, feita em Alter do Chão. Entre as lembranças desses tempos lá estão as brincadeiras com “carrinhos feitos de arame e latas de conserva, à beira de searas e favais”, na Corredoura ou na Tapada dos Fornos, as “brincadeiras de pé descalço na rua, os jogos da «pata», do «eixo» e com bola de trapos”, a festa das Maias, as touradas à vara larga ou “os dedos e boca lambuzados debaixo das grandes amoreiras das Escolas Velhas”. Mas também “o cheiro da esteva e do piorno a sair do forno do pão, e a «tiborna» com ele ainda quente, azeite e sal para aquecer a alma nesse tempo em que o frio matava”.

Sobre a família, neste conjunto de textos avulta a figura da avó, assim apresentada, sem necessidade ou vontade de mais pormenorizada identificação. Mais exatamente o quintal da avó, “uma espécie de jardim do Éden” da sua primeira infância e adolescência. “À esquerda o poço, à direita o galinheiro, e ao fundo o muro branco, alto, e a grande figueira do vizinho a oferecer figos lampos, escuros e doces, para comer com pão logo pela manhã”.

Para João Barrento, são memórias de um lugar que recorda “sem grande emoção, apenas com alguma melancolia” que lhe “traz imagens de pai e mãe, tempos felizes mas duros, histórias de uma guerra que não entendia e me aterrava”.

DE LISBOA A HAMBURGO

Concluída a primária, eis João Barrento em Lisboa, aluno do Liceu D. João Castro a viver em casa de uma prima afastada do pai. Foi “sozinho”. Só no ano seguinte é que toda a família se mudaria para a capital. O marido dessa prima, lembra, chamava-se Albertino Macedo, era membro do PCP e tinha ligações a figuras como Rui Luís Gomes, Maria Lamas ou Humberto Delgado. “Apercebi-me, com onze anos e naturalmente sem consciência política, de que exista uma coisa – sinistra – chamada política e ditadura: a PIDE vinha de noite e levava esse meu primo, operário metalo-mecânico”, escreve em “Curriculum Vitae”, texto com que se apresenta em “Encontros e Travessias” [Edições Húmus, 2014]. Segundo refere, terá sido por esta altura que se apercebeu “da ação do poder arbitrário sobre as pessoas”.

Seguiram-se os estudos de Filologia Germânica, na Faculdade de Letras de Lisboa, onde se cruzou com professores como Vitorino Nemésio ou David Mourão Ferreira. Por esta altura, como se viu, ainda ponderou ingressar na Marinha. A guerra “aconselhou-o” a desistir. Estudante universitário, aproveita as férias de verão para percorrer a Europa, “sozinho ou acompanhado, com ou sem dinheiro, trabalhando no que calhava para ficar mais umas semanas”. Ainda deu aulas, num liceu. Confessa não ter “gostado do ambiente da sala de professores”. Candidata-se a um Leitorado de Português. É colocado em Hamburgo. E isso, “seria determinante” para a sua evolução futura.

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