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Doçaria tradicional de Beja: o estudo de Castro e Brito

Luís Godinho texto

São receitas que ocuparam um lugar muito especial nos conventos de Beja, mantidas em segredo e apenas transmitidas dentro de quatro paredes. A doçaria “era uma arte” que exigia “talento e aplicação prática” para que o resultado final, “saído das mãos de Esposas de Cristo”, fosse algo de “grandioso e imaginativo”. A doçaria de conventos e palaciana teve também um papel na manutenção das redes de relações das famílias mais importantes, sendo oferecida “a médicos, bispos, familiares e amigos, em especial, por ocasião dos seus aniversários, no Natal e na Páscoa”. Em 1940, Diogo de Castro e Brito publica “A Doçaria de Beja na Tradição Provincial: Apontamentos de Etnografia”, trabalho fundamental para o conhecimento dos doces tradicionais da região.

Comecemos pelos bolos: folhados, costas, folares, popias de massa do pão, bolo de prata, pão-de-ló ou bolo podre, mas também arroz-doce, leite-creme, vários pudins, sericaia ou ovos-moles. Os primeiros, mais comuns “a todos os lares, em maior ou menor representação consoante os recursos económicos das famílias”, feitos à base de “farinha de trigo espoada, rolão (farinha com farelo), ovos, açúcar, mel, casca de limão, especiarias, azeite, manteiga”. Os segundos, “de uso limitado nas famílias e restritos, ainda assim, às comemorações festivas de significado religioso, ou de congratulação intencional”. E, depois, aos bolos, acrescentam- se os “doces finos”, de raízes conventuais, feitos com “açúcar, amêndoa doce, chocolate, ovos e doce de gila e subsidiariamente doce de cidrão e vários condimentos”. 

Cá estão os pastéis de nata de toucinho, talhadas de bolo de bom gosto, talhadas francesas, queijinhos de hóstia ou cristos, rebuçados de ovos, talhadas de bolo de rolão, papos de anjo, figos de chocolate recheados de ovos, túberas, castanhas de ovos, caroços de alcorça. Para recuperar algum fôlego, antes de prosseguirmos, convém lembrar que se trata de receitas religiosamente guardadas durante séculos nos conventos, sendo que a “intuição artística” não podia descurar a decoração dos doces, aqui se utilizando diversas peças figuradas: “presuntos salgados, presuntos de fiambre, queijos da região, nas suas duas fases extremas, duros e frescos, e peixes, tudo com as suas dimensões e aspetos exteriores próprios e ainda os morgados, de todas as mais conhecidas, nas aforas da região”. 

Avancemos então pela lista de especialidades já que em matéria de “doces finos” convém não esquecer as trouxas-de-ovos, doce de gila guarnecido com fios de ovos, encharcada de ovos, fatias da China e lampreia de ovos. A que se somam mais alguns fritos, “tão usados pelas diferentes classes, consoante as suas variedades”.

Devemos a listagem de doces ao médico e latifundiário Diogo Castro e Brito que, em 1940, por ocasião da Exposição do Mundo Português, publicou na revista “Ocidente” um estudo fundamental para o conhecimento da doçaria típica do Baixo Alentejo: “A Doçaria de Beja na Tradição Provincial: Apontamentos de Etnografia”. 

Se desta lista não consta o porquinho doce da pastelaria Luiz da Rocha, finalista do concurso Sete Maravilhas Doces de Portugal, realizado no ano passado, não foi por esquecimento de Castro e Brito, antes por se tratar de invenção recente, como o próprio se apressa a explicar: “Aqui se deve fazer referência a uma peça de doçaria relativamente recente, criada pela indústria profissional com intenção turística, em alusão à especialidade pecuária característica da província. É ela constituída por pequenas peças modeladas em feitio de porcos, de maior ou menor peso, conforme o preço (…) Recheadas de doces de ovos e amêndoa, têm um revestimento de chocolate em que assentam, como decoração, pequenos ramos de bolotas e dísticos alusivos à intenção, feitos com massa de açúcar. Costuma esta especialidade, contemporânea, ser apresentada em caixas de cartão, mais ou menos ornamentadas, segundo a sua categoria e preço”. 

Na verdade, talvez não fosse tão recente. Num trabalho de mestrado em antropologia, Inês Mestre recorda que o historiador e gastrónomo Alfredo Saramago publicou num conjunto de receitas, não datadas, “provenientes de diferentes conventos femininos do Alentejo onde constam receitas semelhantes à do doce apresentado por Castro e Brito, concretamente, uma receita de porco doce recheado, associada ao Convento de Nossa Senhora da Conceição de Beja, e uma receita de porco de chocolate com recheio, associada ao (eborense) Convento de Santa Helena do Calvário”. 

Entre estas receitas e a do Luiz da Rocha “existem muitas semelhanças ao nível da apresentação e os ingredientes base são os mesmos: ovos, amêndoa, doce de gila, açúcar e chocolate ou cacau”. Ou seja, apesar de descrito em 1940 como sendo uma “especialidade contemporânea”, Inês Mestre defende ter sucedido no caso do porquinho doce um fenómeno idêntico ao registado noutros pontos do País: “A indústria da pastelaria apropriou-se de um doce requintado, cuja produção havia estado especialmente a cargo das ordens religiosas femininas, como fator distintivo da doçaria local, trazendo um conjunto de inovações”.

Natural de Vagos, Luiz da Rocha chegou a Beja com 14 anos de idade, tendo começado a trabalhar na casa de um afamado doceiro Baltazar, que confecionava bolos de amêndoa numa casa situada na antiga rua do Buraco, hoje rua Dr. Brito Camacho. “Foi assim que aprendeu o ofício de doceiro e encontrou os meios que necessitava para se estabelecer por conta própria”, sublinha o historial do café, inaugurado há 126 anos. Luiz da Rocha “recuperou algumas das receitas dos conventos e com elas adoçou a boca de gerações de bejenses e de pessoas de vários pontos do País, que aqui vinham provar o seus bolos cujas receitas perduram até aos dias de hoje”. 

Entre eles, o porquinho doce, as queijadas de requeijão ou as trouxas-de-ovos, um dos “doces finos” anotado por Diogo de Castro e Brito, segundo o qual as trouxas, servidas em grandes pratos, eram presença habitual nas mesas de casamentos e batizados, sendo colocadas em forma de pirâmide, decorada no topo com uma rosa de papel. “Havia mesmo, em algumas famílias, pratos só para esse efeito reservados, que pelas suas extraordinárias dimensões a mais nada podiam servir”.

“Estas trouxas-de-ovos distinguem- se de outras, como as das Caldas ou as de Aveiro, sobretudo, porque são cónicas. De resto, fazem-se de modo semelhante. Cozinha-se gemas de ovo em calda de açúcar em forma de placas que são depois recheadas com fios de ovos, enroladas e apertadas numa das pontas para fazer o cone. A calda anterior é vertida, por fim, sobre as trouxas”, sublinha Cristina Castro, autora de “A Doçaria Portuguesa – Sul”, onde explica a origem de diversos doces típicos do Baixo Alentejo. 

Entre eles, destacam-se as túberas (ou “tubaras” se optarmos pelo vocábulo grafado por Castro e Brito), uma massa de amêndoa recheada com ovos- -moles, os queijinhos de hóstia, segundo receita conventual já comum no início do século XVIII, os papos de anjo, colocados dentro de papéis de seda recortados, ou as queijadas das Maltesinhas, pequeno bolo com nozes, mel, chila e fruta cristalizada.

“Para além dos consumos da casa, quase exclusivamente para os patrões e seus convidados, os doces finos eram ainda usados na manutenção das redes de relações das famílias, sendo oferecidos a médicos, bispos, familiares e amigos, em especial, por ocasião dos seus aniversários, no Natal e na Páscoa. Os doces eram também consumidos em ritos de passagem (como casamentos, batizados, bailes) e em festas privadas realizadas nas sacristias das igrejas”, assinala Inês Mestre.

A arte da doçaria

Em A Opção Claustral e a Tradição Gastronómica Local e Regional, a historiadora Antónia Fialho Conde, do Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades da Universidade de Évora, explica que a doçaria “ocupou um lugar muito especial nos conventos portugueses, sendo que o secretismo das receitas nos impede hoje de ter acesso a dados mais concretos sobre essa mesma confeção”. “Se no panorama conventual nacional facilmente nos lembramos, no domínio da doçaria, de Santa Clara de Coimbra, de Celas, de Tentúgal, de Odivelas, de Santa Ana e da Esperança de Lisboa, de Santa Iria de Tomar, no Alentejo temos muito especialmente as comunidades da Conceição de Beja, das Maltesas de Estremoz, das Chagas de Vila Viçosa, do Paraíso e de Santa Clara de Évora.

 De facto, nestas comunidades femininas a doçaria era uma arte, exigindo, como todas as artes, talento e aplicação prática, até chegar ao doce que, saído das mãos de Esposas de Cristo, teria que agradar, que ser grandioso e imaginativo para poder constar na sua mesa”, acrescenta a historiadora. Ainda segundo Antónia Fialho Conde, os doces de pequeno formato, como as talhadas de bolo de rolão, os tosquiados de amêndoa ou os rebuçados de ovo, “eram apresentados em tabuleiros, guarnecidos com franjas de papel multicolor, sendo os mais brandos envoltos em papel de seda de fino recorte”, decoração que envolvia um “trabalho laborioso e demorado”. 

Das cozinhas conventuais saíam ainda doces secos, “apresentados em caixas de cartão, madeira ou lata”, e doces de prato como os morgados, “que tinham uma espécie de caixa circular exterior feita de uma massa de farinha de trigo, coberta com um preparado de açúcar, e cuja parte superior era inclinada para dentro, recebendo o recheio, formado por ovos-moles, trouxas-de-ovos, fios de ovos, massa de amêndoa, doce de gila e de cidrão, em camadas sobrepostas”.

Uma longa história têm também os pastéis de toucinho do antigo Convento da Esperança, uma massa circular feita com farinha, gema de ovo e manteiga, colocada em formas com seis centímetros de diâmetro e recheada com um doce feito com toucinho moído (que lhe dá nome), amêndoa, gemas, açúcar e canela. Do mesmo convento vem o denominado bolo podre, com sabor a mel e a azeite, outrora cozido no forno do pão e que se conserva por um longo período de tempo. 

Tratava-se de uma doçaria radicalmente diferente da que a gastrónoma Maria Antónia Goes classifica como “popular” (in Carta Gastronómica do Alentejo) e que se repetia por toda a região: “Bolos folhados – com ou sem gila – as pepias, as pepias caiadas, os esses de amêndoa, as escarapiadas, os biscoitos de azeite, as cavacas, os suspiros, os bolos de torresmos, as filhós e borrachos, as azevias, o arroz doce (com ou sem gemas e com banha em vez de manteiga), as padinhas, os bolos de massa finta”.

 Muitos destes doces, lembra a autora, são feitos à base de massa de pão, “melhorada com banha ou azeite, açúcar amarelo, canela e pouco mais”, sendo que cada terra “tinha o seu doce”. É assim que encontramos os bolos folhados de gila (Castro Verde), as pintadas e filhós com mel (Alcácer do Sal), os beijinhos (Mértola), o bolo de amêndoa (Vidigueira), as areias (Sines) ou as fitas, cavacas e bolo podre (Cuba), entre muitos outros.

 Das pederneiras às talhadinhas e ao bolo chibo

Cristina Castro define-os como “biscoitos pequenos e secos”, cuja consistência se assemelha à das pedras. Daí o nome: pederneiras. Existem em Braga e em Beja, sendo que por cá a massa adquire características regionais, eventualmente, mais rústicas: pão, com banha de porco e ovo. No Minho, é feita com farinha, ovos e canela, especiaria que lhe dá uma coloração mais escura. Foi em Salvada que a autora de A Doçaria Portuguesa – Sul encontrou produção significativa. Sendo que encontrou pederneiras ricas e pobres, ou seja, com ou sem chocolate. Sucede que Diogo de Castro e Brito, no trabalho etnográfico publicado em 1940, nem sequer admite a utilização do chocolate, referindo que as pederneiras “não se incluem entre os doces finos”, feitos pelas famílias endinheiradas.

 “Ao invés, seria uma receita que os mais pobres fariam com os ingredientes disponíveis: farinha, poucos ovos, mel, eventualmente, algum açúcar e uma pitada, se houvesse, de alguma especiaria”. Garante Cristina Castro que só em Almodôvar é que há doceiras conhecedoras do fabrico do bolo chibo, cuja origem do nome talvez tenha sido desvendada quando, em 2013, foi publicado um receituário no qual se aconselha a utilização de leite de vaca ou de cabra. 

“Para fazer o bolo chibo junta-se farinha de trigo, um pouco de canela, bicarbonato de sódio, mel, ovos, açúcar amarelo. Mistura-se tudo com uma colher de pau e adiciona-se azeite ou manteiga. Finalmente, adiciona-se leite e vai num tabuleiro fundo do forno, de preferência a lenha”. Já as talhadinhas, também de Almodôvar, têm origem numa receita do Convento de Nossa Senhora da Conceição de Beja. “O doce faz-se grosso modo juntando amêndoa pisada ao açúcar em ponto de pérola. Uma vez que não leva ovos, esta massa de amêndoa fica muito branca”. Depois de arrefecida, é recheada com doce de ovos, chila e fios de ovos, enrolando-se à semelhança das tortas.

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