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Do século XVI ao drone. O que resta da raia de Duarte Darmas

Luís Godinho texto

Quinhentos anos depois de Duarte Darmas ter percorrido a raia e desenhado castelos, casas, igrejas e paisagens, o historiador Santiago Macias voltou aos mesmos locais do Alentejo, entre Mértola e Montalvão (Nisa), com recurso a novas tecnologias, para ver o que persiste desse registo original. “Duarte Darmas – Do Cálamo ao Drone” é o título de um livro, uma exposição e uma página de internet que nos convida a revistar as terras de fronteira.

Bem pode Duarte Darmas argumentar que a sua perspetiva é a de Alandroal tirada “natural da banda do sul”, que a boa verdade é que esse “natural” não o é assim tanto. Na verdade, explica Santiago Macias, “para não perder elementos informativos, Duarte Darmas falseia a realidade e apresenta a zona fora de portas numa simulação de subida em direção às muralhas”. 

Dito de outra forma, o desenho do século retrata uma paisagem “precisamente inversa” à existente. E há mais um pormenor. A inscrição “Eu mouro Galvo, fui mestre de fazer este castelo do Alandroal”, cuja lápide ainda hoje assinala a reconstrução da fortaleza em finais do século XIII, não se encontra assinalada no livro originalmente publicado no século XVI.

Foi por volta de 1510 que Duarte Darmas, escudeiro do rei D. Manuel, registou em desenho todas as fortalezas da zona da raia, ou seja, 56 castelos de Castro Marim a Caminha. Ora, 20 destes castelos, situados na fronteira do Alentejo, “uma das mais extensas e importantes do país”, de Mértola a Montalvão (Nisa), foram revistados por Santiago Macias, doutorado em História pela Universidade de Lyon 2 e investigador do Centro de Estudos em Arqueologia, Artes e Ciências do Património. Daqui resultou a edição de um livro, “Duarte Darmas – Do Cálamo ao Drone”, de uma página de internet com o mesmo nome e de uma exposição que já esteve patente em Lisboa, no edifício sede da Caixa Geral de Depósitos, e que poderá agora ser vista no Castelo de Elvas (ver caixa).

“De cada castelo”, assinala o autor, “Duarte Darmas tirou duas perspetivas e fez uma planta da alcáçova. No essencial, a imagem urbana em campo e contra-campo, com as muralhas e o ambiente urbano a servirem de enquadramento. O registo da alcáçova dá direito a medições, feitas em varas e pés. Um registo pormenorizado, ainda hoje de grande utilidade, em especial nos sítios onde se fizeram modificações dignas de registo”.

Com este projeto, Santiago Macias propõe uma “revisão da imagem dos sítios”, ou seja, um exercício no sentido de mostrar o “que veria em cada localidade Duarte Darmas, se no presente pudesse regressar aos sítios que visitou”. A ideia é igualmente “identificar as principais peças de arquitetura que o desenhador viu no século XVI, revisitá-las e contrastar esses verdadeiros ícones com outros monumentos que, em cada sítio, foram sendo construídos até à atualidade”. 

Se Alandroal, por essa altura, era concelho recente, uma vez que a primeira carta de foral só lhe foi atribuída em 1486 por D. João II, já Monforte, vila que D. Dinis ofereceu à filha como dote de casamento, era concelho dois séculos mais antigo. Mas dos desenhos do século XVI à atualidade, a paisagem mudou. “Castelo e muralhas desapareceram. Olhando a vila ao longe, é já com dificuldade que percebemos o que Duarte Darmas viu”, assinala Santiago Macias, lembrando que o castelo “foi demolido, dele restando poucos panos de muralha”. Ainda assim, “no meio das casas estava, e ali continua, a ermida de São Pedro. Tal como então, destaca‐se de forma nítida na envolvente e na malha urbana”.

Também a alcáçova de Arronches é, hoje em dia, uma simples “memória cartográfica”, registada pelo desenhador do século XVI. “Ficava no sítio onde hoje temos o o Largo da Restauração e a Rua 1.o de Dezembro. A torre virada à Rua da Porta Nova é o elemento mais evidente dessa estrutura. Quase podemos dizer que é o único elemento que nos chegou da fortaleza vista por Duarte Darmas e que está representada no lado direito do desenho feito a partir do leste. Grande parte da fortificação ficou em ruínas, depois da explosão do paiol de pólvora, ocorrida em 1663”, refere Santiago Macias. A igreja matriz, “que atualmente pontua o panorama urbano” da vila, ainda não existia por essa época. De traça manuelina, foi construída no século XVI e reedificada depois da explosão. 

“Colagem de apontamentos”

Logo nos primeiros locais percorridos no âmbito deste projeto – Mértola e Moura – o historiador constatou a “impossibilidade prática” de Duarte Darmas representar aquelas paisagens a partir de um único local, à semelhança do que mais tarde iria comprovar em Alandroal e nos outros castelos. “O que o desenho abarca não pode ser visto, em nenhum dos 20 exemplos da fronteira alentejana, de um só local. Não há, assim, um único ponto de vista”. Ou seja, “a representação de cada local – e de modo mais notório nos locais de maior dimensão – resulta de um somatório de dados, de uma colagem de apontamentos, tirados vários pontos”, tendo o escudeiro de D. Manuel I seguido um “modelo de representação que selecionava pontos de destaque em cada localidade, escolhendo‐se o que era, ou se pensava ser, mais importante ou representativo”.

É assim também em Castelo de Vide que “no alto da villa tem o seu castello”, e este “hé talvez o mais grande e fermozo que tem toda a raia do Reino”, como assinalam as Memórias Paroquiais de 1758. Nos registos de Duarte Darmas, a localidade “aparece cingida por arvoredo, paisagem que as muralhas modernas e o crescimento de Castelo de Vide, entretanto anularam”, mas a identificação das igrejas de Santa Maria, São João e Santiago Maior “parece relativamente pacífica”, na observação de Santiago Macias. “O passar dos anos não eliminou, e a despeito de sucessivas reedificações, a memória dos elementos do desenho do século XVI. Pervive a visibilidade torres sineiras, que apresentam pontos de contacto, do ponto de vista formal, com as das igrejas quinhentistas”, conclui.

O “NOVO” PERFIL DE ELVAS

Em “Duarte Darmas – Do Cálamo ao Drone”, Santiago Macias refere que se divisa “com alguma dificuldade” a forma como o escudeiro de D. Manuel I representou no século XVI a cidade de Elvas. E a explicação é simples: “O crescimento da urbe, ao longo dos séculos, e a construção das fortificações pós‐Restauração alteraram, de modo sensível, o perfil do sítio”.

Entre estruturas identificáveis e outras que desapareceram, a descoberta das diferenças entre os desenhos de há 500 anos e a atualidade é uma das propostas da exposição, que estará patente no Castelo  da cidade entre os próximos dias 24 de março e 9 de abril.

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