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De quando o concelho de Arronches contava 26 tabernas

Luís Godinho texto

Nascido numa família “de barbeiros, cozinheiros e mestres artesãos”, Diogo Júlio Serra publica livro de “memórias e afetos” sobre o concelho de Arronches.

Diz quem disso tem memória que ali para os lados de Arronches existiam, em meados do século passado, 26 tabernas que, em muitos casos, coabitavam com pequenas mercearias. As primeiras, as tabernas, constituíam o espaço de “socialização” dos homens, onde “entre um copo, quantas vezes fiado, dois dedos de conversa e uma partida de cartas se escondia o desespero pelo trabalho que faltava e a preocupação pelos salários de miséria”. Já as mercearias, na porta ao lado, vendiam “de tudo o que era necessário para a gestão doméstica”, sendo frequentadas, sobretudo, por mulheres.

Diz quem disso tem memória que ali para os lados de Arronches existiam, por essa altura, 26 tabernas, 13 das quais na sede de concelho, incluindo nestas contas três desses estabelecimentos, “já para lá da fronteira”, embora geridos e frequentados por gente do lado de cá. “Eram postos avançados do comércio transfronteiriço, bases de apoio a uma atividade com enorme peso nas regiões raianas: o contrabando”.

Já iremos espreitar algumas destas casas, provar iguarias e percorrer as coletividades. Antes, é preciso dizer que quem disso tem memória é Diogo Júlio Serra, 70 anos, gestor de projetos e consultor cultural e artístico, com um (já longo) percurso no associativismo e na vida política. Uma memória agora registada em livro. “Arronches com Vida – Memórias e Afetos” é uma edição da Colibri, na qual a autora do prefácio, Maria Margarida Serra, escreve que o autor, “nascido e criado numa família de barbeiros, cozinheiros e mestres artesãos”, cresceu “entre a escola e o trabalho”, ajudando como podia na oficina de carpintaria do pai. “É talvez pelo facto de ter vivido entre estas duas realidades [a escola e o trabalho] que pode ser narrador e personagem do pedaço de história que nos apresenta”.

Trata-se de uma história feita de “memórias e de afetos” que bem pode começar por uma paragem na Taberna do Cainó, na Rua da Esperança, casa com uma “vista privilegiada sobre o rio e a confluência dos caminhos” que levavam a Arronches viajantes vindos de Espanha, Mosteiros, Campo Maior ou Portalegre. Era por ali, lembra o autor, que vivia “uma das figuras mais conhecidas da vila e das terras vizinhas”, um cauteleiro de nome Caleira, que “primeiro de bicicleta, depois de ‘motoreta’ mas principalmente à boleia”, percorria a região a vender jogo. Mais acima, João Tourão, funcionário da Casa do Povo e “viciado” em totobola, “não perdia uma oportunidade para discursar”.

Não muito longe da Taberna do Cainó, deixemo-nos conduzir pela memória de Diogo Júlio Serra e entremos na Casa João Feiteira, ponto de encontro e “de espera” por quem aguardava vez na barbearia do mestre Ulisses: “Frente ao balcão duas mesas com tampo de mármore e atrás delas a montra onde eram expostos vários produtos de calçado e vestuário agrícola. Mesas, cadeiras e bancos pintados de cor vermelha contrastavam com balcão forrado por mosaicos brancos”.

A entrada na taberna era feita pela Rua da Porta Nova. Pela da Esperança acedia-se à mercearia, “onde sobressaíam a grande balança e a faca de cortar bacalhau”. Lembra o autor que as paredes laterais “eram forradas por prateleiras onde se alinhavam os diversos produtos não alimentares”. Os hortícolas ficavam junto ao balcão.

Na Taberna do Sr.º Damásio, diz quem disso tem memória, servia-se açorda de poejo com ovo cozido. Na Estalagem do Torrinha, lacão panado, cação frito ou sopa de cachola. Os passarinhos fritos, petisco já proibido por diretivas comunitárias, faziam as delícias da Taberna do Feiteira. Para bordalitos fritos ou perninhas de rã, aconselhava-se um salto à Taberna do Zé Gadêncio.

SOCIEDADES E FAVAS FRITAS

Se as tabernas constituem um belo pretexto para evocar gentes e petiscos, às coletividades então existentes, escreve o autor, estava reservada uma tripla missão: “espaço de sociabilização, organização/representação de classe e, sobretudo, locais de convívio”. A sociabilização, está bem de ver, começava pelo bar, onde a partir da década de 60 começaram a surgir aparelhos de televisão, outro fator de interesse. Na época, contabiliza, existiam seis coletividades. Quatro na sede de concelho (Centro Republicano Arronchense, Atlético Clube de Arronches, Sport Lisboa e Arronches – a Maravilha e Clube Columbófilo Arronchense), uma na freguesia de Esperança (Sociedade Recreativa Esperancense) e outra em Lisboa, a Casa do Concelho de Arronches, fundada em 1953 e que constituía “porto seguro para os arronchenses que por doença tinham que se deslocar para a capital”.

Entremos no Centro Republicano, criado em 1902, uma delegação do Partido Republicano numa época em que ainda reinava “o Senhor Dom” Carlos. E entramos para recordar algumas das famílias que “passaram pelo bar” da coletividade: “O Sr.º Manuel da Faia e esposa, o Sr.º Marouço e esposa, o Sr.º Pinto e a esposa, a minha tia Artéria, que me deliciava com as favas fritas com sal, com que os utentes do bar acompanhavam o vinho e a cerveja, nos dias em que conseguidos os três tostões necessários para que a televisão fosse ligada, nos juntávamos no salão vigiado pelo olhar duro e sério dos vultos republicanos cujos retratados decoravam o espaço”, escreve Diogo Júlio Serra, lembrando a existência da mesa de bilhar, os jogos de dominó e a leitura do jornal República que, por ser da oposição ao salazarismo, “só ali podia ser encontrado”.

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