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Da “inquietude de saber” à “nova” aldeia neolítica no Alentejo

Luís Godinho texto | Gonçalo Figueiredo fotografia

Na Herdade do Freixo do Meio “nasceu” uma aldeia do neolítico antigo, para lembrar como era a vida dos primeiros agricultores alentejanos. É um povoado construído com recurso a dados arqueológicos, etnográficos e a alguma dose de experimentalismo.

Pouco depois de avivar o lume que ocupa o espaço central no povoado neolítico recriado na Herdade do Freixo do Meio, próximo de Foros de Vale Figueira (Montemor-o-Novo), o arqueólogo Manuel Calado dirige-se para o interior de uma das duas cabanas e coloca a mão sobre o barro que reboca uma das paredes, preocupado com uma pequena infiltração de água. Os dias tinham sido de muito chuva, mas a construção resistiu.

Habituado a desvendar o património arqueológico do país, em particular no Alentejo, Manuel Calado aceitou o repto do proprietário da herdade, Alfredo Cunhal Sendim, de “perceber a humanidade” que ao longo dos milénios habitou este território. As escavações arqueológicas conduziram à descoberta de um menir e de vestígios de um povoado neolítico. 

Logo depois surgiu a ideia de reconstruir esse povoado, a poucos metros de distância, não propriamente com qualquer finalidade económica ou turística, mais pela “satisfação” da aprendizagem. “Não fizemos isto com o intuito de criar um produto didático ou turístico, isso é uma consequência deste trabalho. O princípio, o fundamental, é a inquietude de saber mais, de todos os dias aprender”, explica Alfredo Cunhal Sendim.

Escavado o povoado original, onde ainda decorrem trabalhos arqueológicos, o primeiro passo para a edificação da nova aldeia neolítica foi identificar o sítio onde ela poderia ser construída. E esse é dos dados arqueológicos “mais seguros”, no que ao neolítico antigo diz respeito. 

“Este povoado segue a norma geral, de que conhecemos muitos casos no Alentejo, em que os locais eram escolhidos junto a grandes afloramentos graníticos, numa plataforma adjacente. Normalmente esses afloramentos são deixados do lado oeste/norte, do lado dos ventos dominantes. Portanto, tratámos de replicar essa opção”, revela Manuel Calado, sublinhando que todo o trabalho teve por base dados arqueológicos e etnográficos, a que foi necessário juntar algum experimentalismo, como adiante se verá.

Escolhido o local para a instalação do povoado, foi necessário definir uma planta e construir duas cabanas: a principal, que serviria de residência e abrigo para a família que aqui se instalasse há sete mil anos; e uma outra para guardar mantimentos e artefacto e que, mais tarde, poderia igualmente ser usada como habitação, caso a família viesse a aumentar.

A planta não foi difícil. “Sabemos que, por essa altura, as construções eram circulares, nos nossos climas, sobretudo no Mediterrâneo, e portanto optámos por essa alternativa. No Norte da Europa, na mesma altura, faziam-se plantas retangulares, mas aqui eram circulares”, explica o arqueólogo. Já a construção das cabanas, essa, revelou-se mais complexa.

Um primeiro problema prendeu-se com o tipo de materiais utilizados, uma vez que as madeiras “não se conservam, no nosso clima, por períodos de tempo tão longos”. Assim, tendo por base “os dados arqueológicos existentes” e a preocupação de ser “o mais verosímil possível”, foi crucial a informação recolhida numa escavação arqueológica nos arredores de Barcelona, um povoado neolítico onde, por razões ambientais muito específicas, “todos os materiais orgânicos, como as madeiras e as cordas, conservaram-se” e resistiram à passagem dos milénios.

“Usámos esses dados para construir as cabanas, cujas paredes foram feitas com um entrelaçado de ramagens e rebocadas com barro cru”, diz Manuel Calado, revelando que esta técnica construtiva “está bem documentada” em Portugal. “Quando as cabanas ardiam por acidente ou por serem queimadas na sequência de um qualquer conflito, o barro que rebocava as paredes cozia e, então, encontramos fragmentos de barro com negativos da matéria vegetal onde estava encostado. Para isso dispúnhamos de dados arqueológicos locais”.

Aos elementos da arqueologia somaram-se os etnográficos, tanto mais que, lembra o arqueólogo, “até muito recentemente alguns povos construíam de forma simples, semelhante à do neolítico, e seguimos essas técnicas”. E depois, bom, depois também foi importante alguma criatividade, “os povos de há sete mil anos também a deveriam ter”, e uma dose de experimentalismo, testando soluções. Segundo Manuel Calado, essa dimensão experimental aplicou-se, por exemplo, às matérias-primas: “Temos procurado identificar onde é que se encontram materiais, aqui na herdade, que eram indispensáveis para fazer os artefactos utilizados nessa época, nomeadamente os machados, e a testar as técnicas para os produzir”.

AGRICULTURA E PAISAGEM “NO CENTRO DAS ATENÇÕES”

Além dos povoados neolíticos, o original e a réplica, o circuito arqueológico pela Herdade do Freixo do Meio inclui outros pontos de paragem como um cromeleque (conjunto formado por diversos menires) recriado pelo arqueólogo em torno de um menir que já existia na propriedade e que foi levantado e colocado “na posição mais próxima possível do original”.

Por detrás desse menir  surge a réplica de um cromeleque, à escala, sendo que essa é a escala do cromeleque do Vale d’El Rei, em Pavia, que o próprio Manuel Calado escavou e restaurou há cerca de 20 anos e que tem a particularidade de ser “o mais pequeno, mas o melhor conservado, de todos os cromeleques” existentes em Portugal. “É o único que está intacto”.

Este local, refere, fornece uma “boa oportunidade” para explicar de “forma imersiva”, a quem por ali passa, o que eram os cromeleques, qual a sua forma original e a finalidade para que eram construídos. “Tivemos a sorte de encontrar um povoado do neolítico antigo, dos primeiros agricultores do Alentejo. E achámos que isso tinha tudo a ver com o projeto do Freixo do Meio por evocar o início da agricultura justamente numa propriedade onde a agricultura e a paisagem estão no centro das atenções”, conclui.

“O PASSADO É FUNDAMENTAL”

O projeto, diz Alfredo Cunhal Sendim, proprietário da Herdade do Freixo do Meio, surgiu da sua convicção de que “o passado é fundamental” para enfrentar os desafios do futuro. Daí o objetivo de perceber “como é que a paisagem evoluiu e porquê” e compreender a evolução da humanidade neste território. “Começar a contar a História só a partir do momento da constituição do país é um roubo, uma lacuna enorme. A ideia de que houve uma substituição de pessoas está completamente posta de parte, nós temos uma continuidade… somos as mesmas pessoas, com os mesmos genes, com uma história riquíssima”, acrescenta. 

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