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Contra a ciganofobia. Continuemos a aspirar a uma sociedade mais justa

José Pinheiro (texto) | Historiador e professor de História

Na década de 60, as feiras constituíam ainda um evento importante nas vilas e cidades do nosso Alentejo. Os ciganos dedicavam-se ao comércio de gado muar, importante porque a mecanização era incipiente. Recordo ir pela mão de meu pai a feiras de gado e foi aí que conheci “os ciganos”: via-os comodiferentes, mas figuras cativantes pelo modo como se moviam naquele meio. Fica aqui registada a declaração de interesses.

O problema que vos trago é o da ciganofobia. Ciganofobia (ou anti-ciganismo, anti-gitanismo, romafobia) são conceitos que procuram indicar a discriminação de que a comunidade cigana é alvo. Quero falar-vos de um vídeo, que me sensibilizou bastante. Pode ser visto no Youtube, procurando “yo no soy trapacero”, uma campanha contra a discriminação.

A mensagem passada é bem real: uma definição discriminatória gera discriminação. A mais recente edição (a 23.a do “Diccionario de la Lengua Española”, da Real Academia Espanhola da Língua, na entrada “cigano” (‘gitano’) apresenta, como um dos significados, “trapaceiro”. O que aliás também acontece em dicionários portugueses.

No vídeo são apresentadas crianças, que num primeiro momento percecionamos como crianças “comuns”, mas depois percebemos que pertencem à etnia cigana, a quem é pedido que consultem no referido dicionário a palavra “cigano”. Perante a definição de “trapaceiro” e, quando não conhecem o termo, esclarecido no dicionário o seu significado, as reações são reveladoras… e dão que pensar no alcance que estas representações provocam na criação e manutenção de preconceitos, estereótipos e imagens distorcidas do “outro”.

No blogue “Pare, escute, olhe” refere-se que “o anti-ciganismo e ciganofobia só podem ser superados se a sociedade admitir a sua existência. Nada pode mudar a mentalidade das pessoas se estas não estiverem conscientes da realidade: o problema não é a comunidade cigana, mas o anti-ciganismo. A chave para reverter e contradizer os estereótipos negativos passa pela interação direta entre as pessoas, na comunicação social e através da educação”.

Como professor digo que necessitamos de uma escola que promova a Educação para a Cidadania Democrática (ECD), segundo a definição do Conselho da Europa. O funcionamento de uma organização escolar, inserida numa sociedade democrática, deve considerar princípios como a valorização da diversidade, bem como o combate aos estereótipos e preconceitos que levam às discriminações. Uma escola promotora da igualdade de oportunidades, que contribua para uma sociedade mais justa e mais coesa.

A defesa do acesso e sucesso de largos setores da sociedade à escolaridade esteve sempre associada à defesa de uma sociedade mais igualitária e mais livre. No caso dos ciganos, o analfabetismo e a baixa escolaridade alia-se a outros problemas que geram um círculo vicioso, do qual é difícil sair: a pobreza, a exclusão habitacional e do mercado de trabalho, entre outros.

Também na ciganofobia, a abordagem tem de ser qualitativamente diferente do que tem sido. José Gabriel Pereira Bastos defende que “a questão cigana, em Portugal (e na Europa) só conhecerá alteração significativa quando for tratada como uma questão política, partindo do combate à discriminação e segregação, e não como uma questão (…) assistencial, tutelar ou securitária, isto é, como uma mera questão social”.

O mesmo autor, num artigo no jornal “Público”, em que refere um caso passado em Fronteira, denuncia que “de sul a norte, a ciganofobia continua a constituir a mais grave e escandalosa de todas as situações de racismo e xenofobia registadas em Portugal”. Defende que o Estado promova uma estratégia de discriminação positiva.

PROBLEMA LATENTE

O problema da ciganofobia existe de forma latente na nossa sociedade. É algo que se deteta nas conversas, nas atitudes. A título de exemplo, atente-se nos sapos, ditos “para afastar os ciganos”, estrategicamente colocados nos estabelecimentos comerciais. Conheço vários e ainda no fim de semana passado “descobri” mais um, de dimensão generosa, num café. Curiosamente esta ação discriminatória parte duma pessoa, proprietária do espaço, que tem um filho portador de deficiência que, como sabemos, integra um subgrupo social que é igualmente vítima frequente de discriminação.

Não pretendo branquear atos condenáveis, individuais ou em grupo, quaisquer que sejam os envolvidos. De minorias ou de maiorias. Ou de esta ou aquela etnia. Cada cidadão é portador de direitos e deveres e deve ser responsável pelos seus atos.

Coisa diferente são anátemas coletivos sobre comunidades inteiras ou etnias: um caminho perigoso cujos resultados vemos ao longo da História, como o massacre de judeus em 19 de abril de 1506, em Lisboa (mais de quatro mil mortos, segundo o relato contemporâneo de Garcia de Resende), para dar só um exemplo.

“Utopia”, etimologicamente, significa tão só que algo não existe em nenhum lugar, não que é irrealizável. Continuemos a aspirar a uma sociedade mais justa e fraterna. E a trabalhar para isso.

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