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Como funcionam as redes que escravizam trabalhadores agrícolas

Chegam ao Baixo Alentejo com a promessa de salário digno, alojamento e alimentação. Acabam a viver “em condições degradantes e sub-humanas”, ameaçados, condenados à fome e à mendicidade. São milhares de trabalhadores agrícolas vítimas das redes de tráfico de seres humanos.

Luís Godinho (texto) e Gonçalo Figueiredo (fotografia)

“Os pretos são burros, deixa-os em Beja e que morram à fome”. A frase, dita por uma mulher romena a um outro suspeito de integrar uma rede de tráfico de seres humanos a operar no Baixo Alentejo, foi intercetada pelas autoridades. É não só ofensiva e racista. Ela demonstra igualmente, como sublinha o Ministério Público, “um total desrespeito pela dignidade humana” dos trabalhadores que caíram nas malhas da rede. Não é caso único. Num outro processo, com outros intervenientes, em que se investiga o mesmo tipo de crime, alguns trabalhadores surgem apenas identificados como ‘negrii’ [negros]. São, por norma, os mais mal pagos.

Estes dois processo resultam das maiores operações de combate ao trabalho escravo levadas a cabo pela Unidade Nacional de Contraterrorismo da Polícia Judiciária. Ambas centradas no Baixo Alentejo. A primeira, realizada em 2022, conta com 51 arguidos, 26 dos quais em prisão preventiva. A segunda, desencadeada há dois meses, envolveu 480 operacionais e levou à detenção de 28 pessoas, 13 das quais ficaram em prisão privativa. Entre elas está a mulher escutada a dizer para deixarem “morrer à fome” alguns dos trabalhadores que tinha à sua guarda.

Nas duas operações foram identificadas mais de 500 pessoas “em condições de miséria humana”, vítimas de redes que na Roménia, na Índia, no Senegal ou na Gâmbia recrutam trabalhadores para os campos agrícolas do Alentejo. Acabam a trabalhar “em troca de um parco salário, um alojamento em condições degradantes e sub-humanas, cujo valor lhes era, ainda assim, descontado do suposto salário que teriam de receber”, sintetiza o Ministério Público na acusação, já concluída, do processo de 2022.

Uma análise a estas e a outras investigações judiciais permite reconstituir o funcionamento destas redes, a começar na angariação das vítimas, feita através de intermediários nos respetivos países de origem, “com promessa de trabalho e de alojamento condigno”. Os trabalhadores africanos, por exemplo, são levados por via marítima para Espanha e, daqui, conduzidos de autocarro para o Alentejo. Já os do Leste da Europa são frequentemente transportados em autocarros ou carrinhas, sucedendo também viajarem de transporte público.

Num dos casos, que culminou com a condenação de seis arguidos a penas de prisão por tráfico de pessoas, a viagem iniciou-se na Roménia. Acompanhados por um elemento da rede, os mais de 30 trabalhadores entregaram-lhe os documentos de identificação, alegadamente para aquisição do bilhete de autocarro até Espanha, para a elaboração dos contratos de trabalho ou simplesmente para “não os perderem”. 

O autocarro deixou-os em Sevilha, onde foram recolhidos por outros elementos da rede, que os levaram para o local de alojamento, uma antiga panificadora no concelho de Aljustrel. Aqui, “dormiram em colchões no chão, em cima de paletas, 30 a 40 pessoas numa mesma dependência, sem qualquer privacidade por se tratar de um espaço aberto e sem qualquer móvel onde colocar os seus haveres pessoais, que permaneceram nos sacos de viagem empilhados no chão”. Chovia no interior do edifício. Para todo o grupo havia apenas uma casa de banho e um espaço reservado a duche, muitas vezes sem água quente. Começava o inferno.

Divididos em três equipas de trabalho, todas chefiadas pelo mesmo indivíduo, eram acordados entre as 05h00 e as 06h00 e levados para trabalhar no campo. A viagem chegava a demorar mais de uma hora. Seguiam-se oito horas de trabalho, “sete dias por semana, sem dia de descanso, desde que as condições climatéricas o permitissem”. O almoço era não mais que uma sande, com uma fatia de mortadela ou de fiambre, por vezes com uma salsicha. Nada mais. O jantar, também fornecido pela rede, “consistia apenas num prato de sopa ou num prato de massa ou de arroz e três fatias de pão para cada um”.

Na Roménia tinha-lhe sido prometida a celebração de contratos de trabalho, um salário mensal superior a 500 euros, “descanso ao domingo, alojamento gratuito, três refeições diárias e transporte gratuitos para os locais de trabalho”. Nem o salário foi pago. Já em Portugal, os líderes da rede, como refere o acórdão que os haveria de condenar, informaram os trabalhadores que lhes iria descontar “três dias de salário para a renda de casa, dois a três dias de salário para a eletricidade, dois a três dias de salário para a água e uma quantia indeterminada para o combustível gasto pelos veículos nas deslocações para os locais de trabalho”.

As ameaças eram permanentes. “Sempre que um dos trabalhadores reclamava das condições de trabalho, da falta de comida ou das más condições da habitação, era chamado de porco, animal”, prossegue o acórdão, indicando que as ameaças incluíam as famílias, que “sofreriam represálias, como “serem agredidos ou mortos ou ser posto fogo nas suas casas” caso algum deles fugisse ou se queixasse às autoridades.

Sem dinheiro nem documentos, a milhares de quilómetros de casa, sem dominarem a língua, alvo de ameaças, estes trabalhadores viveram durante mais de um ano “num clima de terror, não ousando abandonar as instalações da panificadora que lhes servia de casa, nem do local no campo em que estavam a trabalhar, nem falar com alguém para pedir ajuda”.

INDIGNIDADE E MILHÕES

A mesma maneira de atuar, outro caso. Amontoados “em locais indignos”, em diversos concelhos do Baixo Alentejo, por vezes 17 pessoas por quarto, sem casa de banho, grupos de trabalhadores migrantes eram forçados a trabalhar consecutivamente, sete dias por semana, às vezes 15 horas diárias, a troco de um salário que, feitos os descontos para alojamento e transporte, andaria à volta dos 150 euros mensais.

Enquanto os trabalhadores tinham muitas vezes de “mendigar para subsistir”, a rede multiplicava a abertura de empresas tendo faturado, segundo o semanário “Expresso” mais de 7,7 milhões de euros, “sem declarações de IVA, IRC ou contribuições à Segurança Social”.

Em novembro passado, a “Operação Espelho”, desencadeada no âmbito de dois inquéritos abertos pelo DIAP de Évora, levou a Polícia Judiciária a várias cidades e freguesias do Baixo Alentejo, no cumprimento de 78 mandados de busca e de detenção. 

O processo teve origem na denúncia de migrantes de origem senegalesa e gambiana, alojados em Cuba num imóvel sem condições de habitabilidade e obrigados a trabalhar, de segunda a sábado, a troco de um salário mensal de 100 ou 150 euros, tendo a operação permitido desmantelar “uma estrutura criminosa dedicada à exploração do trabalho de cidadãos imigrantes, na sua maioria, aliciados nos seus países de origem”, sobretudo na Roménia, mas também na Moldávia, Ucrânia, Índia ou Paquistão.

Fonte da PJ indica que os suspeitos, de nacionalidade portuguesa e estrangeira, encontram-se “fortemente indiciados” pela prática de diversos crimes, como associação criminosa, tráfico de pessoas, e extorsão, entre outros.

“MUITAS INVESTIGAÇÕES”

As duas grandes operações desencadeadas pela PJ no último ano “são uma pedrada no charco”, mas não resolvem o problema do tráfico de seres humanos para trabalho agrícola no Alentejo. Quem o diz é a diretora da Unidade Nacional de Contraterrorismo da PJ, Manuela Santos, segundo a qual “há muitas investigações em curso, mas este fenómeno dificilmente será erradicado, pelo menos nos próximos anos”.

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