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Carnavais de Évora. Memória e contemporaneidade

O Carnaval ou Entrudo e outras festas análogas serão sobrevivências de antigos cultos agrários, nos quais a morte do espírito da vegetação do ano precedente é acompanhada de simbólicos ritos de luto. Rui Arimateia (texto)

O tempo do Carnaval ainda é tradicionalmente considerado como tempo de festa, de jogo, onde a “transgressão”, a “loucura”, o “imoral” e a “paródia” deveriam ter sido, em eras remotas, os únicos valores aceites de um tempo de renovação, de exaustão do “velho” e do “gasto” para que o “novo” pudesse ressuscitar, germinar com a primavera.

Talvez daí o facto de se chamar, desde tempos imemoriais, de Entrudo (Entrada) a esta época de caos e desordem que antecedia paradigmaticamente a génese cíclica da transformação natural e da organização social no início do ano solar, celebrado desde o recente solstício de inverno.

Nas concepções míticas mais arcaicas existem certas e determinadas épocas do ano em que se abre o “mundus” e as energias do caos são libertadas. Nem benéficas nem maléficas, estas energias eclodem, então, num frenesim de dominância, povoando as águas, as terras e as gentes! São tempos de tempo sagrado e como tal sem quaisquer limites ou condicionamentos. 

A realidade do eterno presente das origens, renova-se. O princípio e o fim do mundo conhecido serão coincidentes nestas cíclicas e imprescindíveis imersões caóticas primordiais. Das energias libertadas, destas energias primevas, emergirá, então, um novo Tempo: um novo mundo, regenerado e recriado!

Assim, o Carnaval ou Entrudo e outras festas análogas serão sobrevivências de antigos cultos agrários, nos quais a morte do espírito da vegetação do ano precedente é acompanhada de simbólicos ritos de luto. O da Serração da Velha (Morte); e os dos Enterros: do Carnaval, do Entrudo, do Bacalhau, do Galo, do Nabo, da Sardinha, do João, etc., muitos deles culminando com a leitura dramatizada dos respectivos Testamentos.

AS BRINCAS DE CARNAVAL DE ÉVORA

Em Évora, as Brincas são as manifestações mais representativas do Carnaval tradicional. Manifestações culturais tradicionais, ainda hoje vivas, sendo únicas pela forma e pelo conteúdo, pela originalidade e pela criatividade. Apresentam-se como uma dramatização popular, musicadas e coreografadas, tendo por base um fundamento constituído por um “corpus” de décimas, tão características do Alentejo, e um dos pilares das oralidades da cultura popular alentejana.

Tradicionalmente, as Brincas eram constituídas somente por homens, travestindo-se, se necessário, para o desenrolar do fundamento, numa média de quinze a vinte: um mestre, dois ou três palhaços (os faz-tudos), meia dúzia de músicos, onde a bateria (bombo e caixa) e a concertina têm um papel fundamental, um porta-estandarte e os restantes figurantes para a execução/representação do fundamento.

Por Brinca entende-se também toda a acção dramatizada (o fundamento), musicada (a contradança, a valsa, a canção, etc.) e coreografada (as diferentes formações que têm lugar ao longo de toda a acção: as rodas, etc.). que os grupos assumem nas várias representações que realizam. O fundamento, constituído por décimas de versos rimados, é a alma da brinca e apresenta-nos um enredo, com princípio, meio e fim, podendo este focar diferentes realidades sócio-culturais e históricas através de episódios bíblicos, da História de Portugal, da realidade social alentejana, da guerra, dos contos populares tradicionais, do comum quotidiano e muitos outros.

O espaço performativo tradicional de eleição das Brincas situava-se a Norte e a Oeste da cidade. Era o território das Quintas do termo de Évora – desde o Degebe passando pela Garraia, Espinheiro e Canaviais; seguindo pelo Louredo e Sr. Jesus dos Aflitos até ao Alto de São Bento; finalmente abarcando o território da Barraca de Pau, Peramanca e Santo Antonico. Eram dezenas de quintas e de “montes” densamente povoados e ainda com características rurais, cujos trabalhos ocupacionais eram de natureza essencialmente agrícola.

E era nestas quintas, até à década de 60 do século XX, que se fazia sentir uma densa ocupação populacional e onde havia de facto uma concentração de jovens – os “rapazes das Brincas”, como eram denominados – e que iam criar e enriquecer a formação de competitivos grupos de Brincas por todo aquele território.

Com o crescente fenómeno da emigração e com a obrigatoriedade do serviço militar durante o período da guerra colonial, a partir de 1961, as quintas acharam-se a pouco e pouco desertas de população jovem. As Brincas não desapareceram totalmente, mas ficaram residualmente representadas, conquanto tenham conseguido a sua continuidade até aos dias de hoje.

O Carnaval tradicional de Évora não se esgotava nas Brincas. Aliás estas manifestações eram praticamente excluídas dos festejos carnavalescos intramuralhas e “dominavam” tão só as quintas ao redor de Évora. Por outro lado, havia todo um frenesim à volta das Sociedades Recreativas e Filarmónicas com a criação de bailes de máscaras, de “assaltos”, de grupos de músicos mascarados pelas ruas da cidade, além dos grupos dramáticos apresentando peças alusivas à época… Tudo feito com alguma parcimónia porque as autoridades vigiavam os desacatos e as fugas aos bons costumes e à moralidade vigente…

As ruas da cidade eram também percorridas alegremente por outros grupos organizados para festejar o Entrudo, a que se dava o nome de Trupes.  Os Tirones e Os Realistas, dos anos 80 do século passado, capitaneados pelos Srs. Arlindo Ferreira e José Alves, ainda hoje são relembrados com saudade.

Proponho de seguida a leitura de um artigo do “Notícias de Évora” de 1923 e que, por sua vez publica uma descrição das vivências do Carnaval em Évora no ano de 1883. Servirá para comparar, se for possível, com as nossas vivências contemporâneas…

O Carnaval em Évora no ano de 1883

Foram dias de grande bulício, de grande festa e de grande alegria esses três dias de folia, que já não volvem e nem esquecem.

A cidade por essa ocasião, oferecia um aspecto jovial, lindo e festivo, o movimento era desusado porque a maior parte da população vinha para a rua.

A população do campo, incluindo a das aldeias vizinhas, também se associava à da cidade, invadindo-a por todos os lados, tomando como que de assalto todas as hospedagens, pousadas e bodegas, que regurgitavam de fregueses, com grande gáudio dos seus donos.

Logo no domingo «gordo» aí pelas 10 horas da manhã, por entre uma massa compacta de povo, começavam a aparecer as primeiras mascaras, a que se seguiam pouco depois as danças, dirigidas pelo João Cagão e o Mélro do Farrôbo, combatendo com as suas espadas de pau, forradas de papel prateado, dançando e contradançando com os seus arcos de flores, cantando e recitando versos à la diable, fazendo-se no final de cada exibição o respectivo peditório para a bela di_a vinhaça

Apareciam depois as paródias dos Sapateiros, das Lavadeiras, Carcovados, as Touradas, as Bichas, os Diabos e os Ursos e toda esta gente tocava instrumentos diversos, chocalhos, campainhas, apitos, cantava, dançava, pulava e fazia um barulho infernal, capaz de ensurdecer os meninos da Graça.

Os alunos da Casa Pia, com a sua charanga e as suas cantigas; a charanga do 5; as filarmónicas 1.º de Dezembro e Academia Minerva e a grande Estudantina Eborense, dirigidas respectivamente por Teodósio, Velasco, Teia, Costa e Esquível, a que se juntava uma infinidade de pequenos grupos musicais, muitos dos quais, compostos do tradicional harmónio, com acompanhamento de ferrinhos e castanholas, tudo isto contribuía, para dar à festa um carácter único e inverosímil.

Percorriam as ruas, também, um grande número de carros, carrinhos e carretas de todos os feitios e qualidades, alguns ornamentados com louro e bucho, transportando os atributos das diversas artes, precedidos por grupos de operários com os seus trajes de ganga azul, tocando e cantando o Hino do Trabalho.

No meio de toda esta confusão circulava uma infinidade de indivíduos, uns a pé, outros de carro e ainda outros a cavalo, em todas as qualidades de animalejos, jogando ovos, ou por outra, cascas de ovos cheias de serradura, e algumas vezes, também ovos de verdade (felizes tempos), travando-se renhidos combates, entre eles e as damas, que por completo enchiam as janelas. Ovos a 10 réis a dúzia, ovos a 20 réis a dúzia e os ovos acabavam-se. Eram então substituídos por tremoços, bolotas, feijão, e tudo o mais a que se pudesse deitar mão, para servir de projétil

Ao findar do dia, especialmente em terça-feira «gorda», então o que se presenciava é difícil de descrever. Era uma verdadeira loucura, as músicas, de todas as qualidades, a cantoria, as campainhas, os toques de cornetas e apitos, os pregões, as exclamações entusiásticas do povo, isto tudo no meio de uma estouraria medonha, causada pelos maços de estalos chineses e bombas de pataco, transformavam a cidade num verdadeiro Pandemónio.

Das janelas eram arremessadas pelas damas, alcofas cheias de serradura e farinha, sobre os pobres mortais que tinham a ventura de passar por debaixo das suas janelas, e, diga-se a verdade, quem não fosse para casa com um olho amachucado e a cabeça cheia de galos, não era ninguém.

Na terça-feira, depois de Ave Marias, organizava-se o chamado enterro do Entrudo, que se compunha de toda esta gente, munida de archotes e fogos de bengala, que percorriam a cidade em cortejo, no meio de atroadoras exclamações de alegria, dispersando pouco depois cada qual para os seus destinos.

Às 9 horas, tinham começo os bailes de mascaras, no extinto Teatro Eborense, vulgo Teatro das Casas Pintadas, promovidos pelo saudoso velhinho José Matias Carreira, abrilhantados pelas filarmónicas 1.º de Dezembro, Alunos de Minerva e Charanga do 5, sendo outras peças apropriadas, executadas uma valsa intitulada o Tenor, de António Costa e uma polka de cornetim, intitulada “No baile”, feita e tocada pelo mestre Velasco, peças então muito em voga e muito aplaudidas.

Ao contrário do que se dava nas ruas, aonde ninguém se entendia, os bailes eram muito decentes e decorriam com muita ordem.

A maior parte das mascaras, vestiam lindos costumes do guarda roupa do Pardelha.

As quadrilhas dos Lanceiros, foram dirigidas por Luiz Janota e Francisco Sales, tomando parte nelas entre outros, muitos dos quais já lá estão na paz do túmulo, os irmãos Carreiras, Cabreiras, Correias, Salgado, Velozo e outros.

Compare-se com o que se presenceia na actualidade.

“Autres temps, autres moeurs”.

in NOTÍCIAS D’EVORA,  “Velharias e Actualidades – O Carnaval em Évora há 40 Anos”, Ano XXIII, n.º 6636, de 10 de Fevereiro de 1923, pág.1.

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