Carlos Alberto Cupeto texto | Gonçalo Figueiredo foto
Pelo tempo de escassez hídrica que vivemos, pelo aumento do risco devido à alteração climática, é estranho que o país não faça uma gestão integrada dos recursos hídricos disponíveis.
Em matéria de água devemos começar por estar cientes que a que corre no rio, que está no poço, ou que banha as areias da praia é a mesma. A água é só uma, o ciclo da água explica-o; embora se deva questionar se ciclo da água ainda existe ou se a água é, cada vez mais, um recurso não renovável? Este simples e inequívoco facto, a mais das vezes, é ignorado e isso é um erro de gestão que nos custa muito.
O ciclo da água é vulgarmente tratado e gerido por cada uma das suas fases, individualmente. Como se a água do rio nada tivesse a ver com a água do poço ou do furo. Os aquíferos, como reservatórios naturais de água, são disso o melhor exemplo. Na verdade, a parte subterrânea do ciclo da água é discreta e essencialmente oculta. Talvez por isto é normalmente ignorada e particularmente maltratada, excetuando em períodos de escassez. Desde logo convém deixar muito claro que as águas subterrâneas não são um mundo à parte, são uma componente, mais ou menos significativa do ciclo da água, dependendo do contexto geológico. Na dimensão global esta componente do ciclo da água, a subterrânea, corresponde a cerca de 98% da água doce disponível no planeta Terra.
Este dado, que será surpreendente para o comum dos leitores e para muitos “especialistas”, deve bastar para se compreender a importância das águas subterrâneas. Considerando o clima e a geologia de Portugal, as águas subterrâneas assumem importância acrescida. Temos uma estação seca prolongada e quente, cada vez mais extremada, o que nos convida a olhar para os aquíferos, devido ao seu maior poder de regulação, comparativamente à hidrografia. Por outro lado, os principais aquíferos do país (Tejo – Sado, Orla Ocidental e Sul) situam-se, por contingência geológica, nas zonas mais populosas e por isso mais exigentes em matéria de disponibilidade de recursos hídricos.
Por tudo isto, e ainda, pelo tempo de escassez hídrica que vivemos, pelo aumento do risco devido à alteração climática, é estranho que o país não faça uma gestão integrada dos recursos hídricos disponíveis. Entretanto, face à pressão atualmente existente, sobretudo devido aos exigentes e elevados consumos do nosso modo de vida, é certo que os aquíferos correm sérios riscos de sobreexploração. É tradição em alturas de seca lembrarem-se de que há água no subsolo.
Provavelmente, a nota mais importante e significativa que importa saber é que a água subterrânea não é desconhecida em Portugal. Há mais de 40 anos que existem doutorados portugueses especializados e dedicados ao tema e as universidades portuguesas prestam significativa atenção aos aquíferos, muito para além do “ter ou não água”. Desde logo tem de se dizer que a região do país mais pressionada em matéria de recursos hídricos, mas com consideráveis sistemas aquíferos, o Algarve, é objeto de estudos hidrogeológicos intensos e pioneiros em Portugal desde a década de setenta.
Destes trabalhos resultaram os três primeiros doutoramentos (Faculdade de Ciências de Lisboa) em hidrogeologia no nosso país. Em 2000, patrocinado e incentivado pelo extinto Instituto da Água, é publicado e extensamente divulgado um trabalho de referência que se desenvolveu no final da década de noventa, “Sistemas Aquíferos de Portugal Continental”, onde todos os aquíferos são exaustivamente caracterizados e quantificados.
Nessa mesma época, entre 1996 e 1999 uma muito alargada equipa coordenada e financiada pela Comissão de Coordenação da Região do Alentejo elaborou o “Estudo dos Recursos Hídricos Subterrâneos do Alentejo”, cujo principal objetivo foi identificar os recursos hídricos subterrâneos do Alentejo de uma forma alargada e abrangente, do ponto de vista qualitativo e quantitativo. Neste trabalho participaram ativamente a Universidade de Évora, a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, o Instituto da Água, o Instituto Geológico e Mineiro, e a Direção Regional do Ambiente do Alentejo. Mais recentemente a então Administração da Região Hidrográfica do Tejo I.P., promoveu um larguíssimo debate sobre “Os aquíferos das bacias hidrográficas do rio Tejo e das ribeiras do Oeste – saberes e reflexões”. Daqui resultou uma publicação em abril de 2010, o número 7 da coleção Tágides. Portugal não tem falta de estudos e saber, o que falta é aplicação, fazer bem. Neste caso falta uma gestão integral do ciclo da água. Como em tudo e sempre, em Portugal há estudos e saber só falta aplicar e gerir bem.
As sucessivas gerações do Plano Nacional da Água e dos Planos de Gestão de Região Hidrográfica não respondem às necessidades do País ou, basicamente, não passam do papel? Depois de estudos, planos e infraestruturas, depois de muitos e muitos milhões de Euros, o que falta fazer? Estamos agora na fase dos Planos de Eficiência Hídrica que só servem para fazer mais do mesmo, designadamente regar mais área com a mesma água.
O que dizer das mal-amadas barragens? O país pode prescindir de mais barragens? Estamos cientes que falar de água é falar de energia e que face a um conjunto de decisões erradas por pressão ideológica podemos estar à beira de um abismo energético? Mais captações, mais infraestruturas? Mais regadio? Combate-se a seca com mais regadio, como foi durante anos apregoado? Deste enorme somatório de estudos, planos e estratégias, ao longo de décadas, o que se concretizou e quais foram os resultados?
Antes de mais, antes de novas propostas, antes de ação, é imperioso que se faça este balanço, do que se planeou, fez e no que resultou. Só depois disto é que faz sentido desenhar uma agenda para a água. Não são precisas grandes ações, muito menos o habitual entornar de dinheiro para cima dos problemas. A agenda da água, como qualquer uma, exige: ações integradas, exequíveis, com orçamento, calendário, indicadores de execução e responsáveis, que resultem em mais-valia para todos, a começar pelo bem público que é a água. É bom que se saiba que esta é uma matéria vital que não se compadece com opções erradas ou falta de decisão. Desta vez acresce ainda uma importante parcela, o tempo para a tomada de decisão, não temos muito tempo para caminhar no sentido da sustentabilidade hídrica, energética, alimentar, económica e financeira do país. É incontornável adequar todas as necessidades ao recurso disponível, sem esquecer que os ecossistemas são os primeiros e principais usuários.
É óbvio que a crise, seja isso o que for, está também presente na água. Como todas as crises estamos perante uma enorme oportunidade, diria dever, de fazer mais e melhor, o futuro a isso nos obriga.
(Artigo originalmente publicado na revista “Visão”)