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Brito Camacho não era de comezainas. Mas “perdia-se” por iscas

Francisco Alvarenga texto | Let us Discover foto

Manuel de Brito Camacho não era de comezainas. É o próprio quem o diz no início dos anos 30 do século passado: “Naturalmente recordo-me de muita coisa, porque já sou velho; mas não avultam nas minhas recordações almoços, jantares ou ceias, banquetes em que fui obrigado a tomar parte, e dos quais saía, em regra, mais farto do que ouvira que do que comera”. 

Já que banquetes não lhe terão faltado ao longo da vida, quanto mais não seja no período em que exerceu funções como deputado ou ministro da República que ajudou a fundar, Brito Camacho era, confessadamente, “pouco dado aos prazeres da mesa”, quase considerando “malbaratado” o tempo que dedicava a tais tarefas, a menos “que o faça em boa companhia, porque então, a dar à língua, esqueço-me de que estou ali para dar ao dente”.

Claro que há sempre uma exceção à regra. No caso duas. “As ceias da Pintasilga, em Beja, ao custo de seis vinténs por cabeça, e os ágapes frequentes, de saborosas iscas, na travessa da Palha, um pouco mais baratos que as ceias da senhora Pintasilga, raramente indo além dos três vinténs e meio, incluindo os dez réis da gorjeta”.

O relato surge em “Por Cerros e Vales” (Guimarães & C.ª, 1931): “Não havia toalha nem guardanapos; as facas e os garfos eram solidamente presos à mesa, para evitar que se metessem na algibeira dos fregueses, numa ânsia de libertação”.

Das ceias preparadas pela senhora Pintasilga não conhecemos descrição. Mas as iscas que não saíam da memória de Brito Camacho já eram, no início do século XX, um petisco apreciado e difundido pelo país. Conta o gastrónomo Vergílio Nogueiro Gomes que em Lisboa havia quem lhes chamasse “bifes da cabeça chata” por serem “cortados muito fininhos”.

O preço baixo tornava-as presença obrigatória nos botequins e nas tascas, como a da travessa da Palha, onde o mais certo é que a cozinheira cumprisse à risca uma regra então em voga: “A frigideira mantinha a gordura de fritura, sendo acrescentada quando necessário, e apenas se lavava quando havia encerramento temporário do estabelecimento. Acreditava-se que isso seria o segredo para a boa execução, também se fazendo o mesmo para as bifanas”. Alguns clientes nem sequer gostavam de voltar à taberna nos primeiros dias a seguir à reabertura, já que a lavagem anual da frigideira comprometia o sabor final do petisco.

A receita, com poucas variações, manda que o fígado de vitela seja cortado em fatias finas e temperado com dentes de alho picado, sal, pimenta, uma folha de louro, duas colheres de sopa de vinagre e vinho branco, ficando a marinar durante algumas horas. Depois, as iscas são escorridas e alouradas em manteiga e azeite, ou em banha de porco, numa fritura ligeira para que se mantenham rosadas.

Aqui chegados, há dois caminhos possíveis. O primeiro é deixar engrossar o molho, juntando raspas de baço. O segundo é aproveitar a gordura onde se fritaram as iscas, adicionar cebola às rodelas, regar com o molho da marinada, retirando a folha de louro, e deixar apurar. Se servidas com batata cozida teremos “iscas com elas”. Caso contrário, acompanham-se com pão, sob a forma de petisco. O que, de resto, deveria ser a solução mais comum nos “ágapes” frequentados por Brito Camacho na travessa da Palha.

Jornalista no jornal “A Lucta”, onde foi camarada de redação de Brito Camacho e de Fialho de Almeida, Albino Forjaz de Sampaio assegura tratar-se de uma receita “tipicamente lisboeta”, um prato vulgar na passagem do século XIX para o XX. “Eram famosas as do Marreco das Iscas, ao Salitre, as da travessa do Cotovelo, [na] esquina com a rua do Arsenal, comidas de pé, ao balcão e sem garfo, e ainda as da travessa de S. Domingos e as da Magina, às Portas de Santo Antão”.

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