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Bairro da Malagueira faz 45 anos, com olhos postos na Unesco

Luís Godinho  texto | Gonçalo Figueiredo fotografia

O projeto do Bairro da Malagueira, em Évora, iniciou-se em 1977 quando o arquiteto portuense Álvaro Siza Vieira visitou a cidade, pela primeira vez. Quatro décadas depois, há equipamentos coletivos que continuam por construir, como a semicúpula, que deveria assinalar a centralidade do bairro. Em perspetiva está a possibilidade de candidatura a Património Mundial da Unesco.

Localizado na Rua do Aleixo, a dois passos da foz do Douro, o atelier de Álvaro Siza Vieira tem uma vista privilegiada sobre o rio. Com 88 anos, e uma carreira que lhe valeu o Pritzker, o mais prestigiado prémio de arquitetura a nível mundial, é o próprio Álvaro Siza quem abre a porta. “Ah, vêm falar sobre a Malagueira, não é?”, interroga. 

Projeto com implicações políticas e pressupostos ideológicos e éticos, a Malagueira surgiu do repto lançado pela Câmara de Évora a Álvaro Siza Vieira no final da década de 70. Localizado nas proximidades do centro histórico da cidade, o bairro soma 1200 habitações e ocupa uma área de 27 hectares. As obras iniciaram-se em 1977 e prolongaram-se durante duas décadas. Passados 45 anos, a autarquia anunciou a intenção de o candidatar a Património Mundial da Unesco, apesar de o projeto continuar inacabado.

A “cúpula”, por exemplo, um espaço semicoberto que deveria constituir a nova centralidade daquele território, continua por edificar. Tal como a casa de chá, o hotel ou a igreja, entre outros equipamentos coletivos. Todos eles têm projeto elaborado, com a assinatura do próprio arquiteto. Mas tem faltado vontade política para os concretizar. Ou, talvez apenas, incapacidade para o fazer.

“Houve a oportunidade de, simultaneamente, estudar o plano e a tipologia [das casas]”, recorda o arquiteto, que se deslocou a Évora, pela primeira vez, a 18 de março de 1977 para conhecer o local onde o projeto seria implementado. “Quando souberam que eu ia fazer o plano [para o futuro bairro], os sócios da cooperativa [Boa Vontade] pediram-me igualmente que fizesse os projetos para as casas que pretendiam construir. A Câmara concordou. De modo que houve a oportunidade, o que é uma coisa raríssima, de fazer simultaneamente o plano e os projetos para as casas”.

Álvaro Siza acabará por conceber e executar um projeto com “implícitas implicações políticas e pressupostos ideológicos e éticos, tratando-se consequentemente de um considerável repto político, urbano e arquitetónico”, explica Ana Luísa Rodrigues, professora de arquitetura na Universidade do Minho. “Siza pretendia que a sua composição urbana implicasse uma absorção – teorizada e cuidadosa – do lugar, da paisagem e do tecido urbano envolvente, ou seja, uma metodologia de intervenção de certo modo menosprezada, à época”. 

A área, habitada ilegal e precariamente por um grupo bastante heterogéneo, espelhava, à data, segundo Ana Luísa Rodrigues, “a sociedade portuguesa”: nela fixavam-se pessoas de “etnia cigana”, “retornados das ex-colónias” e jovens fruto do “êxodo rural”. O projeto a construir responderia a dois objetivos em simultâneo. Por um lado, permitia a “resolução de problemas provenientes da falta de oferta de habitação de qualidade e a preços acessíveis”. Por outro, impedia a expansão dos bairros clandestinos. Nessa época, dois em cada cinco dos cerca de 40 mil habitantes da cidade de Évora viviam em 29 bairros clandestinos, muitos deles sem rede de saneamento básico, abastecimento de água ou arruamentos.

Em “Siza Vieira em Évora – Revisitar uma Experimentação” (“Cidades – Comunidades e Territórios”, dezembro de 2004), Jean-Michel Léger e Gisela Matos falam numa aventura política e urbana concretizada na conceção de “propostas inovadoras, quer no plano urbano (as galerias de infraestruturas – “aqueduto”, a dimensão tipológica “aberta”), quer no plano arquitetónico (casas de desenho minimalista, geométrico e neoracionalista)”. Esta dimensão experimental, acrescentam, expressa-se na “construção de casas costas com costas ao longo de galerias de infraestruturas”, instaladas num aqueduto que interliga todo o bairro, na “adaptação de uma grelha urbana à topografia local” e na tipologia evolutiva das casas, “ela própria assente em inovações técnicas”.

A “mistura social” da Malagueira, ainda hoje bem presente, “deve-se tanto às circunstâncias da sua programação, como à vontade planeadora do arquiteto”, tendo resultado de uma “interpenetração dos programas privados e públicos, não somente à escala da Malagueira, mas à escala dos seus subconjuntos e, às vezes, mesmo das ruas”, sublinham Jean-Michel Léger e Gisela Matos.

Com escritório no Porto, Álvaro Siza Vieira desloca-se a Évora, nessa altura, de duas em duas semanas, No dia-a-dia, a concretização do projeto é acompanhada pelo arquiteto Nuno Ribeiro Lopes, lembrando que a Câmara de Évora, naquela altura, “tomou a liderança urbanística a nível nacional” com o desenvolvimento de várias ações, entre as quais o combate aos loteamentos clandestinos e a elaboração do primeiro Plano Diretor Municipal (PDM) do país, que só entraria em vigor seis anos depois de elaborado pois, nessa fase, “nem sequer existia legislação” que enquadrasse estes instrumentos urbanísticos.

“Onde é que a Malagueira entrava neste processo? Por um lado, pela valorização do centro histórico. Por outro, como alternativa aos loteamentos clandestinos. Era um loteamento planeado, e a visão que o Álvaro Siza tinha era prolongar a qualidade do centro histórico. A Malagueira inseriu-se nesta lógica, não de combate ao centro histórico, mas de continuidade… uma oposição aos loteamentos clandestinos”, recorda Nuno Ribeiro Lopes, que chegou a Évora em 1979. “Vim pelo prazo de três meses, acabei por ficar 40 anos”.

Para Nuno Ribeiro Lopes, a Malagueira “sempre foi um projeto fundamental ao nível do urbanismo europeu, continua a ser uma escola”, mas é também um “projeto que as pessoas estudam, mas não lhes interessa”, pois “esquecem-se muitas vezes que o que interessa ver na Malagueira não é o aspeto final, mas o processo”. Isto é: “Se não se perceber o processo, digamos, são umas casinhas, é um bairro. Há quem goste, há quem não goste… mas o processo de organização, de construção, de participação da população foi fundamental, fez história e é interpretado em Itália, em Espanha, em todos os países europeus, como uma escola para outros projetos”.

Ainda que inacabado, o Bairro da Malagueira integra o conjunto de obras do arquiteto Álvaro Siza Vieira inserido na lista indicativa de Portugal a Património Mundial da Unesco. Para apoiar este processo de candidatura, mas também para reivindicar a conclusão do projeto, com a construção dos equipamentos previstos, e apostada em criar um Centro Interpretativo do Bairro da Malagueira, foi recentemente constituída a Associação de Moradores e Cidadãos Malagueira Viva e Vivida, que envolve cerca de 340 pessoas ligadas não só pelo “interesse ou afinidade pessoal ou profissional” pelo Bairro da Malagueira e pela sua comunidade, como também pelo reconhecimento para com a “arquitetura e urbanidade” que definem e distinguem o projeto.

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