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Aurora Rodrigues: “Ainda a esperança. 25 de Abril” (opinião)

Aurora Rodrigues, Procuradora da República jubilada, ex-presa política | Opinião

O significado do 25 de Abril, que comemoramos desde 1974, tem de permanecer e talvez nos desperte para o que poderia ter sido um Abril mais inteiro e limpo do que foi ou se tornou. Um Abril mais justo e mais igual, onde todos tivessem casa, onde todos tivessem pão e igual acesso à educação. Foi o que sonhámos. 

Que este Abril não seja sinónimo de segregação e exclusão, nem abandono dos mais velhos e dos mais pobres. Preocupa-me a desigualdade e o aproveitamento de uma crise como a atual e a que está iminente, por parte de alguns, para subverter a democracia que Abril nos trouxe, negar os direitos humanos fundamentais de minorias sociais e económicas e alimentar discursos e atitudes de ódio, muitas vezes subtis.

Do mesmo modo me preocupa a segurança, saúde e até a vida de mulheres e crianças, em famílias que incluem um ou mais agressores. Os gritos podem ser abafados se a solidariedade de quem está perto não tomar forma, e as mortes e sofrimento podem ser causados, sem resposta nem socorro.

O confinamento que recentemente vivemos em democracia trouxe-me à memória o confinamento a que me submeteram a partir do mês de maio de há 50 anos e a importância que têm as pequenas coisas quando resistimos. É que tudo ganha outra escala e fica a memória do que se ouve e vê a partir do local de confinamento, a que antes nunca se tinha prestado atenção.

Em maio de 1973 eu era uma jovem alentejana de 21 anos, estudante de Direito em Lisboa, para onde tinha ido depois de dois anos no Liceu de Beja e, naquele mês, fui presa e entregue à PIDE. Em isolamento, passei a ter sons e imagens unicamente a partir de celas do Forte de Caxias.

Privada de todos os contactos físicos, as visitas que tive, quando estava no reduto norte do Forte, eram feitas com um vidro a separar-nos a toda a largura e altura do cubículo onde as visitas decorriam, com dois pides a assistir.

No reduto sul, onde ficavam as celas de tortura, tocavam-me os pides quando me batiam, me empurravam e me asfixiavam.

As memórias que trago aqui acompanham-me, ficaram mais vivas agora e dão sentido ao presente, marcam bem a diferença que, apesar de todas as incompletudes, há entre ditadura e democracia que o 25 de Abril de 1974 separa.

Naquela altura, lá ouvia abrir e fechar as portas. Ouvia também gritos, vindos de um bairro próximo, das mães a chamarem as crianças. Também ouvi música ao longe, vinda de outras celas no andar de baixo, porque nem todos os presos estavam em isolamento e alguns teriam gira-discos ou gravações de música. Lembro-me de ouvir o Hino à Alegria e também cânticos italianos.

Da cela do reduto sul do Forte de Caxias, onde fui torturada, via o farol ao pé da curva do Mónaco e, do outro lado do rio, na margem sul do Tejo, via uns depósitos metálicos, que ainda hoje lá estão.

Quando Almada passou a cidade, no dia 21 de junto de 1973, estava em tortura do sono e vi, através das grades, o fogo-de-artifício sobre o rio. No dia 16 de maio vieram e levaram-me num carro celular fechado para o reduto sul, só para me avisarem de que me iriam buscar na semana a seguir. Fizeram isso sempre, anunciavam previamente o que iam fazer e é aí que está o medo, que era o grande instrumento da ditadura e da sua polícia repressiva, que era a PIDE.

Disseram-me que me iam buscar na semana seguinte, foi a primeira vez que entrei na cela de tortura. A seguir levaram-me outra vez para o reduto norte.

Deixaram-me outra vez no reduto norte, sem ninguém me dizer nada, à espera. Esta ida terá demorado meia hora no máximo. Na semana seguinte, ao fim da tarde do dia 23 de maio, como tinham anunciado, vieram buscar-me, outra vez numa carrinha fechada, e levaram-me para a cela de tortura no reduto sul. Subi uma escadaria que me pareceu imponente. Meteram-me numa sala onde estava o inspetor do meu processo, Américo da Silva Carvalho.

Apontando as grades de uma janela que me pareceram grossíssimas, disse-me: “Estás a ver aquelas grades? Por ali não passas, a não ser feita em puré. Por esta porta não passas, que nós não deixamos. Portanto, é contigo. Tens duas vias, a via da colaboração e a via do sacrifício. Se escolheres a via do sacrifício, leva mais tempo mas o resultado é o mesmo”. Saiu porta fora. Eu fiquei e permaneci, sem dormir de dia ou de noite, 16 períodos de 24 horas, numa primeira longa sessão.

Eles vinham, entravam, saíam e num dia escarraram-me para cima. Num outro dia, dois pides, na frente um do outro, a uma certa distância, agarravam-me pela cintura e atiravam-me, como se fosse uma bola, de um para o outro, no ar.

Numa fase adiantada da tortura enchiam de água o lavatório, que estava na casa de banho, e metiam-me a cabeça lá dentro e eu ficava a sufocar.

A tortura ia continuando, eram dias e noites e eu estava ali. Havia uma mesa no meio da cela, que tinha um chão em cimento, formando um padrão parecido com o que forma a corticite. Estava uma cadeira, ou mais, com costas para os pides e um banco sem costas para mim. Estive durante todo o tempo de frente para a cadeira dos pides. 

À entrada, a seguir à porta da cela, do lado direito, havia uma casa de banho, cuja porta nunca se fechava e onde nunca ficava sozinha, sempre com uma mulher pide presente. Do lado esquerdo havia um compartimento muito pequenino com um divã, mas isso só descobri mais tarde quando me deitaram nele depois de ter perdido os sentidos por me terem espancado, num espancamento programado e contínuo, durante não sei quanto tempo, mas durante muito tempo e de forma sistemática. Depois, a tortura prosseguiu e punham-me hirudoid para apagar as marcas.

Quando fui presa tinha uma canção na cabeça, do José Mário Branco, “Ronda do Soldadinho – Um e dois e três, era uma vez um soldadinho”. No meio da tortura, com os pides presentes, cantava para mim: “Um e dois e três, era uma vez um soldadinho. Um menino lindo que nasceu no roseiral, os senhores da guerra não matam, mandam matar. Os senhores da guerra não morrem, mandam morrer”. Cantava e eles espumavam, mas era se não estivessem lá.

Estava dentro de uma cela com eles, incomunicável, só tinha contacto com eles, mas o que dizia e o que pensava eles não controlavam, era livre. Tinham-me prendido e torturavam-me o corpo, o resto de mim resistia. Resistia com os pequenos gestos e as pequenas coisas, como o pão com que ia esculpindo pétalas de flores. Foi nessa altura que percebi a importância das coisas pequenas, sem importância. Do mesmo modo que sinto hoje que são importantes as pequenas coisas, os pequenos gestos de resistência.

TRÊS MESES EM ISOLAMENTO

Nascida a 20 de janeiro de 1952 em Vale da Azinheira, nas Minas de São Domingos, Aurora Rodrigues matriculou-se na Faculdade de Direito de Lisboa em 1969/70, tinha 17 anos. Abordada pelo PCP, preferiu colaborar com o MRPP, pois considerava este movimento mais abertamente contra a guerra colonial, mas só aderiu formalmente depois de ver de perto o também estudante Ribeiro dos Santos ser assassinado pela PIDE. Foi presa a 3 de maio de 1973, nas traseiras da Faculdade de Letras, após um meeting de estudantes, e levada para Caxias, onde iria ser, do princípio ao fim, mantida em regime de rigoroso isolamento. A PIDE submeteu-a a longos períodos da tortura do sono, acompanhada de espancamentos bastante violentos, para além de toda a espécie de vexames e ameaças, que visavam coagir os presos a “colaborar”. Foi libertada ao fim de três meses, sem acusação, sem ir a julgamento, sem lhe ser permitido contacto com um advogado. É magistrada jubilada do Ministério Público.

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