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As “muitas vidas” de Ruy de Carvalho no Bernardim Ribeiro

Ana Luísa Delgado texto | Gonçalo Figueiredo fotografia

“Retratos Contados”, uma exposição que revisita os 80 anos de carreira de Ruy de Carvalho, pode ser vista no Teatro Bernardim Ribeiro, em Estremoz. A mostra foi inaugurada com a presença do ator.

“Aquela fotografia ali foi tirada no Teatro Nacional… olhe, aquela é do Maria Matos”, diz o ator Ruy de Carvalho, apontando para uma imagem onde surge na companhia de Catarina Avelar numa cena de “O Encoberto”, peça de Natália Correia censurada pelo regime de Salazar mas que por essa altura, 1977, fazia furor precisamente no Teatro Maria Matos, inaugurado oito anos antes.

É através desse e de muitos outros fragmentos de uma intensa carreira artística que a exposição “Retratos Contados” propõe uma viagem pelos 80 anos que Ruy de Carvalho leva de teatro, num percurso iniciado em 1942 na peça “Jogo para o Natal de Cristo”, com encenação de Francisco Ribeiro (Ribeirinho). Tinha então 15 anos. A sua estreia profissional, no Teatro Nacional D. Maria II, ocorre em 1947, integrado na Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro. Por lá haveria de ficar mais de 50 anos, fazendo parte do elenco residente de 1978 a 2000.

Pela exposição, que poderá ser visitada até ao próximo dia 24 de junho no Teatro Bernardim Ribeiro, em Estremoz, passam “recordações” de uma vida feita da representação “de muitas outras vidas” e de amigos que foi criando pelos palcos que pisou. “São muitas recordações da minha vida, dá-me um prazer especial sentir que já servi tanta gente com a minha representação, sinto-me muito feliz com isso”, dirá o ator ao “Brados do Alentejo”, confessando também um sentimento de “saudade”, sobretudo em relação a muitos dos seus companheiros de percurso, entretanto falecidos.

Atrizes e atores como Vasco Santana ou Laura Alves, Carmen Dolores – aqui os vemos, Ruy de Carvalho e Carmen Dolores, em 1962, numa cena de “Os Três Chapéus Altos”, no Teatro Moderno -, com Armando Cortez – a quem apelidava de “Manduca” – ou com Eunice Muñoz, uma “grande senhora” de quem foi amigo, no clássico “Mãe Coragem e Seus Filhos”, de Bertolt Brecht, levado à cena em 1986 no D. Maria II. 

“Acho que nunca tive nenhum colega que não fosse meu amigo. Tenho muitas saudades de todos”, desabafa Ruy de Carvalho que aos 96 anos ainda percorre o país com duas peças: “Ruy, A História Devida” – em que o público é convidado a fazer perguntas ao ator, “fazendo desta experiência mais do que um espetáculo, mas uma conversa intimista” – e “A Ratoeira”, numa encenação de Paulo Sousa. Ruy de Carvalho já havia havia representado “A Ratoeira”, um texto surpreendente de Agatha Christie, em 1960. “Mas nessa altura”, brinca”, “fazia o papel de galã, hoje sou um galã reformado”.

De entre as numerosas fotografias que integram a exposição, destaque ainda para uma imagem de 1965, captada no então Cinema Império, aquando da exibição da fábula histórica escrita por José Cardoso Pires, “O Render dos Heróis”, na qual Ruy de Carvalho interpreta a personagem do Cego, arrebatando tanto o crítico do jornal “República” – “de realçar, antes de mais, a interpretação de Ruy de Carvalho, na qual patenteia as suas vastíssimas qualidades abarcando praticamente, e com um notável domínio, toda a gama de representação, incluindo canto e apontamentos de bailado” – como do “Diário de Lisboa”, segundo o qual “o seu talento artístico, já comprovado, atingiu um ponto alto, ao nível dos grandes artistas de sempre”.

Na verdade, escreverá Bruno Vieira Amaral, biógrafo de José Cardoso Pires, o próprio Ruy de Carvalho “confessaria que este, um dos muitos cegos na obra de Cardoso Pires, foi um dos papéis que mais gostou de fazer em toda a carreira”, sublinhando o ator a alusão ao implícita ao “povo português, que é cego quando quer”. A peça esteve proibida pela Censura, “Só nos deixava pôr o título nos cartazes. Nem o nome do Cardoso Pires, nem o meu, nem nada. Ganhei o prémio do Serviço Nacional de Informação, mas nunca o recebi”, referiu em entrevista a Adelino Gomes, no “Público”.

Outras imagens a merecerem olhar mais atento são as alusivas àquele que muita gente considera ter sido o papel da “consagração absoluta” da carreira de Ruy de Carvalho: “Rei Lear”, versão da peça de William Shakespear estreada no Teatro Nacional D. Maria II em 1998, a última que ali fez enquanto integrante do elenco residente.

“Senti que era o rei Lear (…)  quando vi que o rei Lear pedia desculpa aos pobres. Há uma cena em que ele lhes pede desculpa porque não sabia que existiam. A mensagem do Shakespeare é exatamente essa: há gente que não sabe que há pobres, há gente que não sabe que há miséria, há gente que não sabe que há gente com fome. Puseram o rei na situação dos infelizes. Nessa cena, garanto-lhe, senti vontade de pedir perdão aos pobres”, dirá na mesma entrevista a Adelino Gomes.

Presente na inauguração da exposição, Ruy de Carvalho subiu depois ao palco do Teatro Bernardim Ribeiro para participar numa tertúlia onde explicou o “segredo” da sua longevidade artística: “[Vou] buscar energia ao trabalho que faço e à dedicação com o que o faço. É o que me leva a ter esta capacidade enérgica de lutar pela arte e pelo teatro em Portugal”.

“Não vêm o carinho do público? Eu vejo…”, disse o ator, aproveitando para deixar um apelo: “Vós é que sois o Ministério da Cultura… os que gostam de teatro, que vêm ao teatro, é que têm de lutar a meu lado para que o teatro subsista e a arte em Portugal seja uma realidade”.

“SINTO ESTREMOZ NO CORAÇÃO”

Quando Ruy de Carvalho nasceu, a 1 de março de 1927, o Teatro Bernardim Ribeiro ainda não tinha completado cinco anos. Projeto de Ernesto da Maia inaugurado a 22 de julho de 1922, este Teatro haveria de acolher diversos espetáculos em cujo elenco Ruy de Carvalho participou. 

“Sinto Estremoz no coração. Vim aqui pela primeira vez com o Vasco Santana… não, foi com o [Arnaldo] Assis Pacheco, há muitos anos… já cá estive tantas vezes”, disse o ator, chamando a atenção para “todos os nomes” de gente do teatro que por ali passou, registados em quadros, como Augusto Rosa ou João da Câmara. 

Nomes aos quais se irá juntar o do próprio Ruy de Carvalho, “perpetuando a sua passagem” por Estremoz. “Temos essa possibilidade e seria perfeito conseguirmos conciliar a inauguração da imagem de Ruy de Carvalho no nosso teatro com, quem sabe, [a oportunidade de] trazer de novo Ruy de Carvalho a representar a Estremoz. Seria um momento que ficaria para a história da cidade e do Alentejo”, diz o presidente da Câmara de Estremoz, recordando a “alegria de viver e de representar” que o ator mantém, e de que deu mostras no Teatro Bernardim Ribeiro aquando da inauguração da exposição, não só através do diálogo que manteve com o público, como também ao recitar um trecho do “Monólogo do Vaqueiro”, de Gil Vicente, peça que representou há mais de 65 anos.

José Daniel Sádio revelou que a vinda desta exposição a Estremoz começou a ser pensada em 

novembro do ano passado, aquando da sua inauguração no Teatro Nacional D. Maria II. “Tive ocasião de estar presente nesse momento e fiquei deslumbrado não só com este conjunto [de fotografias] como com a simplicidade e o carinho que Ruy de Carvalho tem para com o teatro e para com Estremoz”, concluiu.

“VIVER A HISTÓRIA”

Diretor do Teatro Nacional D. Maria II, Pedro Penim evoca os 80 anos de carreira de Ruy de Carvalho para sublinhar “uma carreira ímpar” no teatro. “Ser contemporâneo de Ruy de Carvalho é um privilégio. Poder contar com a sua energia, inventividade e talento no palco é um prémio. Poder fruir destas histórias em formato fotográfico, que compõem esta exposição, é abrir uma janela para alguns dos momentos mais notáveis do teatro português. É viver a história”, sublinha.

Num texto em que contextualiza o projeto, Pedro Penim considera que a exposição “reflete a riqueza incalculável” do arquivo do D. Maria II, sendo as fotografias que a compõem fragmentos de “alguns dos momentos mais emblemáticos da carreira do homenageado, em espetáculos realizados neste e noutros teatros”.

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