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As dificuldades de ser mulher e autarca (reportagem)

Margarida Maneta texto | Gonçalo Figueiredo fotografia

Dos 14 municípios distrito de Évora, apenas três são presididos por mulheres; Arraiolos, Mora e Mourão. Passadas quase cinco décadas sobre as primeiras eleições democráticas, câmaras como Estremoz ou Évora nunca tiveram uma mulher a presidir aos destinos do município. E mesmo a nível da freguesias são raros os casos em que “elas” assumem os comando.

Quando andava entusiasmada com o ensino, área em que é formada, por volta dos seus vinte e tal anos, Sílvia Pinto estava longe de imaginar que viria a ser uma das poucas mulheres autarcas no Alentejo. “Nem sequer me passava tal coisa pela cabeça”, começa por contar. Foi um feliz acaso. “Aconteceu e gostei do que aconteceu”, revela. “Lançaram-me o desafio de integrar a equipa da Coligação Democrática Unitária enquanto vereadora” e acabou por ir vivendo esta vida… até que se tornou a sua vida. 

Bem mais cedo, Sónia Caldeira, vice-presidente da Câmara Municipal de Estremoz, descobriu o gosto pela política. “O bichinho surgiu com o meu pai” porque, com apenas nove anos, viveu umas eleições a que ele se candidatou para a junta de freguesia, processo eleitoral vivido “muito intensamente”. A partir daí, Sónia Caldeira foi-se envolvendo em cargos de responsabilidade, especialmente ligados ao movimento associativo. “Fiz parte da associação desportiva e cultural, de grupos de dança e da organização de festas de verão”. 

Em 308 autarcas que o país escolheu, apenas 29 mulheres foram eleitas nas últimas autárquicas. As presidentes representam 9% do total. O poder local já não é só dos homens, mas está longe de ser também das mulheres. 

“Isto é o reflexo da sociedade em que vivemos”, diz Sónia Caldeira. A forma como a sociedade se organiza e os papéis sociais são interpretados está muito “estigmatizada”, refere Sónia Ramos, vereadora da Câmara Municipal de Estremoz e deputada eleita pelo círculo de Évora. “Nada disto tem a ver com as mulheres não gostarem de política ou não estarem sensibilizadas para a importância da sua participação”. Mas, sim, com questões de disponibilidade. 

“As tarefas domésticas, familiares e de educação dos filhos, além da atividade profissional, levam-nos todo o tempo livre” estando os homens “mais libertos” para o exercício da atividade política, relaciona Sónia Ramos. E exemplifica: os horários de algumas reuniões, à noite ou ao fim de semana, “não correspondem”, muitas vezes, à disponibilidade de quem desempenha tarefas familiares. E quem as desempenha, sabe-se, são maioritariamente as mulheres.

“Continua a ser o papel da mulher em casa a que se dá mais relevância” em comparação com o dos homens, comenta a vice-presidente da Câmara Municipal de Estremoz. E este tipo de preocupações não deixa as mulheres “libertas para outro tipo de realizações”, acrescenta.

Quando assumiu o cargo, Bernarda Cota, presidente da Junta de Freguesia de Canaviais, no concelho de Évora, ainda ouviu as gentes mais velhas dizerem-lhe que isto não era para ela porque deixava de ter tempo para a casa. Entendem, por isso, contrapõe Bernarda Cota, que o homem está mais disponível para estes cargos porque “não vai engravidar” ou “ao médico com os filhos”.

E isto, continua a presidente da Junta de Freguesia de Canaviais, “faz-me questionar” por que motivo é que continuam a ser as mulheres as únicas a desempenhar estas tarefas no seio familiar. Bernarda Cota ainda não se reconhece neste papel que agora desempenha, mas a “relação privilegiada” que diz ter com a política, por lhe permitir o convívio diário com a população, facilita o seu trabalho nesta freguesia por que se apaixonou em 1996.

“Há muitas mulheres que se inserem quando os filhos já são adolescentes ou crescidos, quando já têm outro tipo de independência”, assegura Sónia Ramos. É é esse o caso de Maria Paula Queiroz, presidente da Junta de Freguesia de Nossa Senhora da Conceição e São Bartolomeu, no concelho de Vila Viçosa. “Primeiro veio o preenchimento enquanto mãe”, revela. E agora que uma das filhas já é maior de idade e outra para lá caminha, Maria Paula passou a poder dedicar-se mais “a estas causas”. “Quando as minhas filhas eram mais pequeninas estive afastada”, mas sem perder o fascínio pela atividade política. Agora regressou para “fazer alguma coisa pelas populações”, declara. 

Além do tempo, é preciso renegociar os papéis sociais. E, claro, o empenho, a dedicação aos cargos e a ajuda dos familiares são fatores imprescindíveis.

Por detrás de uma mulher autarca “está uma família unida

“Esta posição precisa de ter uma boa equipa na retaguarda e aí falo na família”, explica a presidente do município de Arraiolos. “São fundamentais para conseguir assumir este cargo porque não há horas nem dias de trabalho. Todos os dias são dias de trabalho e a qualquer hora”, afirma Sílvia Pinto. E entendê-lo exige “muita compreensão” de todas as partes envolvidas.

“Sem apoio familiar que permita este tipo de atividade torna-se complicado exercê-la”, garante Sónia Ramos. Assumir um cargo destes não é decisão que se tome sem ser em conjunto. “É um trabalho nosso”, comenta a vice-presidente da Câmara Municipal de Estremoz, referindo-se à família. E esse apoio traduz-se, também, em fazer destes parte integrante do processo. “Às vezes levo as minhas filhas a iniciativas que decorrem ao fim-de-semana” porque também nelas encontra motivação para “ocupar este cargo e desempenhar este papel”, revela Sílvia Pinto. 

A gestão familiar “não é fácil” e, muitas vezes, “acaba por afastar algumas mulheres destes cargos”, reconhece a arraiolense, ainda que quem conhece os órgãos executivos desta vila não o assume. 

Arraiolos, o ex-libris dos tapetes… e do poder feminino

Uma presidente de câmara, uma presidente de freguesia e uma presidente da Assembleia Municipal. A “terra dos tapetes” é exceção à regra: aqui, o poder feminino não atormenta nem o sexo masculino, nem os papéis sociais. Nos municípios e entidades vizinhas, contudo, Sílvia Pinto admite continuar a estar presente em muitas reuniões em que é a única mulher.

Também Maria Paula Queiroz partilha dessa experiência: “Já estive em várias reuniões sendo a única mulher e nunca me senti a mais”, conta. Portas adentro da Junta de Freguesia de Nossa Senhora da Conceição e São Bartolomeu, as mulheres também estão em maioria. “Somos duas mulheres e um homem”, elucida Paula. E não há motivo para que seja de outra forma: “as mulheres têm capacidades… nas universidades, por exemplo, estamos em maioria e isso mostra que somos capazes”, completa.

Mesmo que lenta, há esperança que a marcha continue. Revelam-no os sonhos das filhas de Sílvia Pinto e Sónia Caldeira. “Diz que quer ser o mesmo que a mãe”, revela a vice-presidente da Câmara Municipal de Estremoz. Já a primogénita de Sílvia Pinto é mais específica: “A minha filha mais velha já me disse que também quer ser presidente… Tem cinco anos”, refere a autarca entre risos. 

“Mas não é por acaso”, acrescenta Sílvia Pinto. “Se em casa tivermos mais relação com o poder local, acabamos por valorizar de outra forma estes órgãos de poder do que se nunca tivermos proximidade com eles. No caso dos nossos filhos, são obrigados e acabam por achar que também podem vir a fazer parte”. 

E o cenário repete-se para os lados de Estremoz. “Quando fui mãe já estava neste meio, tal como o meu marido que foi presidente de junta durante 12 anos”, declara Sónia Caldeira. Pelo que “os meus filhos já nasceram neste mundo”, o que torna difícil que se imaginem fora dele. A esperança é que quando estas crianças lá chegarem o caminho tenha “menos obstáculos”, diz a autarca, ciente de que não é uma questão que se resolva a curto prazo. “Que daqui a 20 anos esta questão [talvez] já não se ponha”. Em consonância, também Sónia Ramos prevê que sejam necessárias algumas “décadas” para conseguir aumentar a participação feminina. A lei da paridade, cuja aplicação foi alargada em 2019, passando a incluir as freguesias e mesas dos órgãos deliberativos das autarquias locais, “é um mal necessário”, afirma a deputada. 

Opinião com que as outras entrevistadas estão de acordo. “[A integração das mulheres] devia ocorrer de forma natural e não obrigatória”, declara a autarca arraiolense. Já para a vice-presidente da Câmara Municipal de Estremoz, este diploma “só deve continuar a existir enquanto as pessoas não perceberem que independentemente de ser homem ou mulher temos direito a estar num cargo político”. 

Para tal, acrescenta Bernarda Cota, têm de “parar de nos ver como alguém que não está disponível”. Contudo, isso só se conseguirá alcançar, segundo Sónia Caldeira, “quando as sociedades evoluírem, quando tanto o papel do homem como o da mulher forem valorizados, deixamos de ter necessidade desta questão”. Nesse dia, acrescenta a vice-presidente estremocense, “seremos todos tratados de igual forma porque esses entraves deixaram de ser entraves”. 

Sem a lei da paridade seria ainda mais “difícil”, considera Sónia Caldeira, sem aceitar, contudo, que afirmem que chegou onde está por causa deste mesmo diploma. “Todas as visões fazem falta, tanto a masculina como a feminina, para construir algo melhor uma vez que estes lugares definem o futuro de todos os munícipes”, complementa Sílvia Pinto.

Com um “maior envolvimento dos homens na lida da casa e no acompanhamento dos filhos”, as mulheres estarão mais livres para poderem ocupar estes postos, acredita Maria Paula Queiroz. E essa mudança societal tem de começar agora. Segundo esta presidente, “os pais de hoje em dia têm de educar os filhos para não ser só a mulher a tratar da casa, dos filhos, das compras”. E acrescenta: “A educação tem de ser diferente da dos meus pais. Todos devem ter essa ocupação. Não é como era antigamente”. 

A política local, contudo, continua como antigamente: um meio altamente masculinizado. Estas cinco mulheres presidentes mantém o fôlego pela igualdade, na esperança que este caminho se vá fazendo mais depressa.

MULHER NÃO ENTRA

Nem na capital de distrito, Évora, nem em Estremoz, ou Redondo, ou Portel, ou em Viana do Alentejo, ou Vila Viçosa, Borba, ou Redondo… mais de 45 anos passados sobre as primeiras eleições autárquicas, em nenhum destes municípios houve uma mulher a presidir aos destinos da autarquia. Não sendo fácil conciliar as responsabilidades familiares com a vida política, são sobretudo as mulheres a enfrentar as maiores dificuldades. Ainda assim, Sílvia Pinto está há nove anos à frente da Câmara de Arraiolos. Montemor-o-Novo já teve uma “presidenta”. E Paula Chuço (PS, Mora) e Marta Prates (PSD, Reguengos de Monsaraz) ganharam as mais recentes eleições e gerem os respetivos municípios. No Baixo Alentejo e no Alentejo Litoral não há nenhuma mulher à frente de qualquer câmara municipal. No Alto Alentejo, Idalina Trindade (Nisa) e Fermelinda Carvalho (Portalegre) “são exceções” num universo marcadamente masculino.

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