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António Carlos Silva, memórias de um arqueólogo “acidental”

Depois de quatro décadas “de militância pública ao serviço da memória”, o arqueólogo António Carlos Silva publicou em livro um conjunto de crónicas, “fragmentos na vida de um arqueólogo acidental”, que remetem para o seu percurso pessoal e profissional e que refletem “as transformações da arqueologia portuguesa do último século”. 

Luís Godinho texto | Gonçalo Figueiredo fotografia

Quando, em 2014, chegaram ao fim as suas funções de chefia no serviço de património da Direção Regional de Cultura do Alentejo, António Carlos Silva começou a perspetivar o “merecido bálsamo” da aposentação, desde logo por já ter cumprido quatro décadas de serviço público, depois porque os tempos não eram fáceis, com “dificuldades de toda a ordem” num país que se encontrava sob intervenção da troika.

Com a aposentação no horizonte começou a arrumar papéis de “um longo e diversificado” percurso profissional e foi aí que se deu conta do “potencial interesse para terceiros de alguns desses materiais e das ‘histórias’ que muitos deles podiam ainda contar”. Em setembro desse ano inicia a publicação de um “blogue pessoal para arquivo ocasional de mais de quatro décadas de militância pública ao serviço da memória”, a que deu o nome de Memórias das Pedras Talhas.

Esse conjunto de “fragmentos na vida de um arqueólogo acidental”, publicados no blogue, foi agora reunido em livro, publicado pela Edições Colibri. A começar… pelo princípio. “Há tantos anos a morar e a trabalhar no Alentejo, a maior parte dos meus amigos e conhecidos pena que sou alentejano. E na verdade já me sinto como tal”, escreve o autor, aproveitando um texto dedicado às memórias de infância para desfazer esse equívoco: “Todas as minhas origens familiares, tanto quanto sei, estão no Carvalhal da Aroeira, uma pequena aldeia situada a nascente da Serra de Aire, a meia dúzia de quilómetros de Torres Novas”.

Foi dali que saiu, com apenas três anos, quando a família se mudou para Moscavide, levada pelo “fluxo de imigração para os subúrbios da Lisboa dos anos 50, ainda antes da exploração migratória para França que nas décadas seguintes esvaziou quase por completo aquela e muitas outras aldeias” do país. Foi ali que o pai arranjou trabalho como porteiro num seminário, graças à “cunha” de um parente que era padre, “deixando por razões de saúde a dura vida de jornaleiro agrícola”.

Ao Carvalhal da Aroeira haveria de regressar amiúde, sobretudo nos “longos períodos das férias grandes”, ocupando o tempo em brincadeiras e tarefas familiares, sendo que “à noite, à mortiça luz do candeeiro a petróleo, lia os livros recolhidos na biblioteca itinerante da Gulbenkian”. Por essa altura nem imaginava que viria a ser arqueólogo. Essa descoberta só aconteceria anos mais tarde, na primeira metade da década de 70, ainda estudante de História na Faculdade de Letras de Lisboa, quando colaborou no levantamento da Arte Rupestre do Vale do Guadiana. 

Por essa altura ainda nem sequer havia formação académica em arqueologia. Pelo que participou, como voluntário, em diversas escavações e integrou projetos de investigação. Durante seis anos deus aulas no secundário. Em 1980 transita, como arqueólogo, para os quadros do Ministério da Cultura, onde exerce diversas funções de direção, publica dezenas de artigos e livros e dirige vários projetos de investigação e escavações, incluindo a Gruta do Escoural e o Castro dos Ratinhos, e coordenou o projeto de “salvamento arqueológico do Alqueva” entre 1996 e 2002.

No livro, sublinha António Carlos Silva, os textos surgem organizados “por grandes temas que, largo modo, remetem para as diferentes fases da minha trajetória pessoal, enquanto profissional do património, nas quais se vão refletindo as transformações da arqueologia portuguesa do último século”. 

Do Alqueva recorda, por exemplo, a reescavação, desmontagem e reinstalação do Cromeleque dos Almendres, que, de outra forma, ficaria submerso pela água da albufeira, ou a “oportunidade perdida” do Museu da Luz, que “poderia ter ajudado a minorar” o que classifica como a “falha mais grave” dos Plano Arqueológico do Alqueva e que se prende com a dispersão dos “números espólios” arqueológicos recolhidos.

Na altura, lembra o arqueólogo, a Câmara de Reguengos de Monsaraz chegou a avançar com a proposta de criação de um Museu Regional de Arqueologia “que viesse a absorver os resultados científicos e os materiais resultantes das múltiplas intervenções em curso”, mas a Empresa de Desenvolvimento e Infraestruturas do Alqueva (EDIA) já se havia comprometido com a construção de um museu na nova Aldeia da Luz. 

“Porque se tratava à partida de um museu etno-monográfico e porque os orçamentos eram curtos face às múltiplas exigências de uma população desgastada pela ‘espera’ e acicatada pelos media, o programa original deste museu não foi além dos estreitos limites de guardião das memórias da sacrificada aldeia”, recorda.

A “PAIXÃO” PELOS ALMENDRES

No prefácio, Gonçalo Pereira Rosa, diretor da National Geographic, lembra que seria “expectável” que o Alqueva fosse o “tema dominante” das memórias de António Claros Silva, sucedendo, no entanto, que a sua “paixão” é o Cromeleque dos Almendres. “Ninguém como ele se esforçou tanto por pôr as pessoas na narrativa e por encontrar nas memórias de quem ali trabalhara pormenores que ajudaram a interpretar o monumento na forma como este nos chegou”, assinala.

É através do arqueólogo que ficamos a conhecer, por exemplo, Bento Rosa Calhau, o Ti Bento, “sobrevivente do trio de trabalhadores rurais que haviam procedido aos primeiros trabalhos de levantamento de menires” no que à época se chamava Alto das Pedras Talhas. 

Já quanto à Anta Grande do Zambujeiro – “grande nau, grande tormenta” – critica o “lamentável estado de degradação e abandono” do monumento, num texto originalmente publicado em 2014 e que, decorridos mais de oito anos, continua atual, como uma “vergonhosa ‘montra’ pública da situação geral do património arqueológico nacional”.

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