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Alentejo, ambiente e paisagem na obra de 17 escritores

Júlia Serrão texto

Primeiro de uma coleção que se apresenta como “inovadora”, o livro “Alentejo(s) – Imagens do Ambiente Natural e Humano na Literatura de Ficção” reúne cerca de duas dezenas de textos de investigadores e estudiosos à procura das “imagens do ambiente natural e da paisagem humanizada” que 17 escritores do Alentejo deixaram nos seus contos, romances e novelas. De natureza literária, o título pretende ser, também, de apelo à sensibilidade ambiental.

O livro “Alentejo(s) – Imagens do Ambiente Natural e Humano na Literatura de Ficção” foi organizado e editado, do ponto de vista cientifico, pelas investigadoras Ana Cristina Carvalho e Albertina Raposo. É o primeiro de uma coleção da Colibri designada “Literatura e Ambiente”, única na temática e no propósito, que prevê a publicação de mais quatro livros, e visa reunir investigadores ou “estudiosos” na análise de obras de vários escritores à volta da questão: “que imagens do ambiente natural e da nossa paisagem humanizada deixaram o(a)s escritores(a)s da Literatura Portuguesa lavrados nos seus romances, contos e novelas?”.

Ana Cristina Carvalho, investigadora integrada do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS) da Universidade Nova de Lisboa, que dirige a coleção, explica que o objetivo “foi convocar para a consciencialização dos problemas ambientais e ecológicos, e até para a própria cidadania, uma área para todos os efeitos artística: a literatura”.

Pode assim falar-se em “pontes” entre áreas de conhecimento ou “parceria”, sendo que ela permite aos investigadores “reflexões teóricas sobre os conteúdos em ambiente e natureza dos textos que estudam ou, por outro lado, estudarem o conteúdo com fins quer de cidadania quer de apoio a roteiros turísticos”. Seja como for, trata-se sempre “de uma interdisciplinaridade que, por definição, é mais rica e permite ir mais longe do que as áreas estudadas isoladamente”.

A investigadora na área do Ambiente explica que a ideia não é nova. Surgiu a nível mundial nos anos 70/80 do século XX e “faz parte da Ecocrítica, que é uma área interdisciplinar que nasceu a partir dos Estudos Literários”, e que considera o “ambiente tão importante para as sociedades, como as questões de género ou de classe social”, propondo-se ver como os escritores as incluíram nas suas obras.

UMA PONTE ENTRE LITERATURA E AMBIENTE

A coleção faz uma “mistura da Ecocrítica com outras interpretações de conteúdo que podem não ser exatamente ecocríticas, mas que mantém sempre o interesse neste diálogo entre as duas grandes áreas”, literatura e ambiente. A abordagem “integrativa” foi pensada não só em termos de matérias, mas também de pessoas, reunindo várias de diferentes áreas de estudo – das Ciências Naturais às Ciências Humanas, da História e Literatura à Geografia  –, e não só investigadores universitários, mas outros estudiosos “que se interessam” por estes temas.

Para Albertina Raposo, professora coordenadora no Instituto Politécnico de Beja (IPBeja) e investigadora no MARE – Centro de Ciências do Mar e do Ambiente, toda essa diversidade, não só das pessoas convocadas à analise mas das suas áreas de formação, “vai para além da interdisciplinaridade ou transdisciplinaridade, porque cruza quase que dimensões diferentes”. Diz que isso traz enriquecimento ao livro, mas também uma “dificuldade em conceptualizar ambiente”, pois há autores que falam de ecologia, outros de paisagem, “e esta pode também considerar-se em variados aspetos”. Por essa razão, chama-lhe uma obra “transdimensional”.

Nesta tentativa de refletir em termos sociológicos, antropológicos, históricos, políticos, filosóficos sobre a influência do ambiente, das paisagens, ou de como a literatura as representa, inclui-se também as questões religiosas, ou da espiritualidade. No artigo de Albertina Raposo e Ana Santos, intitulado “António dos Olhos Tristes: Princípios da Ecologia Integral em Páginas de Eduardo Olímpio”, as autoras vão comparar o autor em estudo com a encíclica ‘Laudat Si’ do Papa Francisco, de 2015, “que propõe este conceito de ecologia integral”. Um conceito que assume que a dignidade de cada ser humano apenas se manifesta numa lógica de relação com os outros e com o mundo, estabelecendo-se no cuidado, na cooperação e na reciprocidade.

NARRATIVA ECOLÓGICA

O livro reúne 19 “estudiosos” na análise de 17 escritores do Alentejo, nascidos ou não na região. Ana Cristina Carvalho conta que a seleção dos romances e dos seus autores se fez com base num “método composto, multifacetado”, começando por seguir a teoria da Ecocrítica “que diz que, para os conteúdos da literatura de ficção em termos gerais chegarem a mais pessoas, e terem um efeito de consciencialização ou, pelo menos, de acordar para a consciência ambiental e geográfica, é útil que os seus autores sejam preferencialmente de renome”.

Começaram pelos “grandes nomes”, como Manuel da Fonseca, Fialho de Almeida ou Urbano Tavares Rodrigues, seguiram-se os escritores contemporâneos com “textos com realismo suficiente que espelhe a região, e com qualidade de escrita”.

A obra “Fantasia Para Dois Coronéis e Uma Piscina”, de Mário de Carvalho, é uma das selecionadas, e logo referida na introdução do livro como “talvez a mais claramente ecológica de todas as ficções analisadas”. A história passa-se num local do Baixo Alentejo onde um coronel vindo de Lisboa manda construir uma piscina “sob a observação atenta do melro e o olhar angustiante do mocho”. Remete “para a fauna e flora locais e para alguns ambientes rurais”. O ensaio de Natália Constâncio, publicado neste livro, propõe “descortinar em que medida a mudança dos dois coronéis (…) desencadeará uma efetiva alteração na paisagem física e rural”, que se revela como “elemento integrante das relações sociais, atitudes e comportamentos humanos que a condicionam ou que são por ela condicionados”.   

O OLHAR NUNCA É INOCENTE

Ana Cristina Carvalho comenta que é preciso criar distância do que se quer encontrar quando se faz uma análise deste tipo. Ou seja, não se pode atribuir ao escritor uma intenção ecológica, porque a maioria provavelmente não a teve. Contudo, no texto de Mário de Carvalho “não há como fugir a essa interpretação”, já que há uma clara intenção nesse sentido. “Não é a única, pois não se trata de um romance ecológico, mas essa preocupação parece estar subjacente”. Ainda a este propósito, Albertina Raposo destaca a medida em que “o olhar é muito condicionado pela formação de base” da pessoa que analisa o texto.

Aceitando que, em geral, é natural que a obra de um escritor registe o tempo em que ele vive, logo as suas preocupações ambientais e ecológicas possam expressar-se na sua criação, a investigadora da CICS diz que o facto é menos evidente nos escritores mais contemporâneos cujos textos estão em análise no livro. Relativamente ao escritor e ao texto que analisa (no capítulo 8) Antunes da Silva com o romance “Suão”, que é “um título com uma componente climática importantíssima que influencia a história e determina a vida das personagens”, diz que não lhe parece que o autor tivesse uma “preocupação climática” ao fazê-lo. O que, no entanto, “não é impeditivo do uso dessa matéria” para extrair informação. Dá conta que Antunes da Silva usa o clima “como fator de agravamento da condição das personagens, das iniquidades sociais”, o que diz ser “extremamente interessante”, e matéria da sua investigação atual.

A obra, ilustrada com várias panorâmicas típicas do Alentejo, planos gerais e aproximados dos campos e das casas, inclui ainda a análise de contos e romances de Manuel Ribeiro, Vergílio Ferreira, José Saramago, José Régio, José Luís Peixoto e Florbela Espanca, entre outros.

PREOCUPAÇÕES ANTIGAS

Um documento da segunda década do século XIX é uma espécie de abertura, cujo título nos guia de forma direta: “Processo preparatório para a concessão de licença de um estabelecimento industrial incluído de primeira classe das tabelas anexas ao decreto regular de 21 de outubro de 1863”.

Trata-se do processo de concessão de licença a James Mason, diretor da mina de S. Domingos, concelho de Mértola, para estabelecer uma fábrica no sítio da Achada do Gamo, freguesia de Santana de Cambas, para tratar o cobre contido no minério extraído da mina. Que inclui a reclamação da população da freguesia, que se opõe ao estabelecimento da dita fábrica. Fundamenta-se a posição: “não só as exalações de tais fábricas são desagradáveis e prejudicam a saúde dos que [ali] vivem (…) tornarão o campo estéril, e, por conseguinte, nocivas à vegetação (…)”.

Ana Cristina Carvalho explica que as coordenadoras da obra tentavam encontrar “qualquer coisa que fosse ilustrativa” da consciência ambiental, quando uma colega do IPBeja, Maria João Ramos, lhes deu a conhecer o documento. “Não podia ser melhor, pois mostra como o ambiente não está desligado do ser humano e da sociedade, como já se mostrava em 1863. Temos a prova que havia uma preocupação ambiental já nessa altura, e um espírito de cidadania forte e já previsto na lei”.

Constituída por trabalhos académicos ou de nível académico, a coleção, que se inicia agora com este título, pretende, como refere a própria editora, visa também “atingir um público mais alargado” que o académico. Ana Cristina Carvalho lembra que o livro foi feito nesse sentido: “Para cativar pessoas que de uma forma geral são interessadas no mundo que as rodeia, são interessadas em questões ambientais, gostam de História e gostam de Literatura”. Albertina Raposo sublinha outro aspeto que pode “despertar o interesse” de qualquer leitor: “Porque não é o Alentejo em abstrato, são locais concretos. Não é apenas o Alentejo, a barragem, a azinheira. São locais, são gente, são costumes, tradições, pobreza, é tudo isso que é permitido trazer para o conceito de Ambiente”. Confessa que depois de ler o capítulo sobre o romance de José Luís Peixoto ficou com imensa curiosidade de ler “Galveias” e de visitar o local.

Mas admite que, inicialmente, também se perguntou se a obra não correria o risco de ficar restrita a um público exclusivamente académico (a ideia também passou pela cabeça de Ana Cristina Carvalho). “Os comentários de algumas pessoas são de tal modo motivadores e inspiradores que eu acho que o livro tem potencial para ir mais longe do que simplesmente à Academia”, diz, lembrando que, por outro lado, este grupo de autores também tem a sua própria rede, podendo fazer divulgação fora do círculo universitário.

A professora coordenadora do IPBeja comenta que cada vez que se folheia o livro, de “carácter inovador, pioneiro, mas ao mesmo tempo cativante na leitura, há sempre alguma coisa a descobrir”. E resume: “Do ponto de vista desta ecoanálise, pensando na região ou nas várias regiões do Alentejo, tendo por base um contexto de ambiente ou de natureza, ou mesmo de ecologia, ao lermos cada capítulo, tudo aquilo faz sentido.”

Lembrando que a educação ambiental já está implementada nas escolas, mas ainda há alguma resistência da parte dos alunos, e que até há pouco tempo a oposição ao conceito de alterações climáticas era enorme, até por parte de cientistas, Ana Cristina Carvalho fala na necessidade de uma educação ambiental alargada a todos os setores da população, numa nova perspetiva: “E se em vez de fazer essa educação unicamente pela via da ciência, levarmos os mesmos conceitos por uma via mais lúdica que é a dos romances e contos, veículos que, à partida, podem chegar a mais pessoas? Se mostrarmos como era o clima num determinado ambiente ficcional, numa determinada zona do País, que até pode ser diferente na atualidade”, questiona, recordando que a palavra “clima” não contém unicamente os fatores meteorológicos, mas também a vida animal e vegetal, a biodiversidade e a relação sustentável do ser humano com o planeta Terra.

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