Nascido em 1955 em Santa Eulália (Elvas), Abílio Amiguinho, professor coordenador, aposentado, do Instituto Politécnico de Portalegre, acaba de publicar um livro de memória. “Nascia-se, casava-se, trabalhava-se e morria-se na aldeia ou no território à medida do seu horizonte, permanecendo uma vida do mesmo lado social: quase todos pobres e alguns ricos”, escreve.
Carlos Fino (texto) e Gonçalo Figueiredo (fotografia)
Como escreveu Fernando Pessoa, “Quem quer dizer o que sente/ – não sabe o que há de dizer/ Se fala, parece que mente/ – se cala, parece esquecer”. Este não é o único dilema que se coloca a quem como eu é conferida a missão de apresentar um livro. Outro é o de saber até onde poderá ir na apreciação crítica que terá necessariamente de fazer, se for o caso, para não se trair a si próprio e ao mesmo tempo não dececionar nem o autor nem o público que o lê. A mesma questão se coloca quanto aos elogios – até onde ir sem ser exagerado, correndo o risco de matar pelo excesso.
Trata-se, no fundo, como em muitas outras situações da vida, de procurar o equilíbrio, o justo meio
– nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Mas há um porém para o qual vos tenho de advertir em abono da objetividade – embora nos separem sete anos em termos de idade, somos ambos do mesmo Alentejo – o Alto e, mais concretamente, ambos com infância e juventude vivenciadas na planície, mais do que na serra.
Não espanta por isso que haja da minha parte um inteiro e confesso partidarismo na apreciação da obra. Ela trouxe-me de volta e de chofre todo o Alentejo da minha infância: as imagens, os sons, os cheiros, as paisagens, os rostos, as vozes, a culinária, as feiras, a fartura da Páscoa – as cadências do cultivo do solo marcadas pelas festas religiosas – tudo vivências que marcam uma vida e moldam o caráter. Trouxe-me de volta também um mar de expressões, ditados, nomes, mesmo de coisas ou situações comuns na infância que entretanto desapareceram dos nossos radares – de galos na cabeça a sabão macaco, passando por rebenta bois, entre muitos outros.
Isto, a par de designações de plantas, instrumentos de produção e de uso diário que o autor vai citando, que tornam necessário, para quem não é daqui e até para muitos que daqui são, como eu, o recurso frequente, a todo um glossário no final do volume, que aliás se pode, com utilidade e prazer, ler por si mesmo.
Começando devagarinho, com a descrição de uma aurora a despontar no campo, ainda sob o céu estrelado, acordando ao mesmo tempo que o rebanho a seu cargo, o autor vai-nos levando, a pouco e pouco, através de pequenas crónicas, para essa realidade hoje quase remota, operada que foi – para o bem e para o mal – a partir dos anos 80, a separação entre a agricultura e o meio rural, pondo fim a um certo tempo longo vindo das profundezas da História, que parecia não ter mais fim.
Mas, se o relato assim repartido em crónicas curtas, ajuda a progredir na leitura, isso não deve iludir-nos. Este não é propriamente um livro fácil: pelo contrário, é um livro exigente, porque as estórias relatadas vêm envoltas, todas elas, numa aura de poesia – como é próprio do Alentejo – que nos obriga a ler e reler uma e outra vez até que por fim a imagem se torne nítida.
Trata-se, como bem assinala, no prefácio, o professor Rui Canário, evocando Antunes da Silva e o seu “Alentejo é Sangue”, de “um cortejo de sonhos de um rio abstrato que corre nos anos da nossa memória; e as águas desse rio dão calor às plantas e matam a sede dos homens”. O estilo, nota, lembra Raúl Brandão, Graciliano Ramos, Saramago, Rodrigues Miguéis… E ainda, diríamos nós, certos trechos de Aquilino e de Alves Redol. Para já não falarmos, no plano antropológico, da consagrada tese de José Cutileiro “Ricos e Pobres no Alentejo”. Tudo isto à mistura com referências de ordem científica, sociológica e histórica, que enquadram e contextualizam as descrições dos episódios.
É com toda esta complexidade que o leitor se defronta, sendo desafiado a ponderar e refletir. As estórias oscilam entre episódios pungentes que revelam as profundas diferenças sociais e alguns quadros pícaros ou simplesmente engraçados, uns e outros dignos de filme. Quando, por exemplo, nos fala das mudanças no mercado de trabalho induzidas pela emigração, sublinha que o caráter das gentes do povo permaneceu, no essencial , idêntico, “na determinação, no não ter medo nem recuar na adversidade e muito menos no trato com os superiores. No entanto, solidário sempre com os do mesmo lado”.
No fundo, confirma, neste passo e ao longo de todo o texto nos episódios que descreve, o que já Torga assinalara: “É preciso ter uma grande dignidade humana, uma certeza em si muito profunda, para usar uma casaca de pele de ovelha com o garbo dum embaixador. Foi a terra alentejana que fez o homem alentejano, e eu quero-lhe por isso. Porque o não degradou, proibindo-o de falar com alguém de chapéu na mão”.
Quanto aos episódios burlescos, pícaros ou divertidos, e não querendo ser ‘spoiler’, lembro por exemplo a corrida das crianças saltando por entre as travessas do caminho de ferro que só por milagre não terminou em tragédia, os ovos quebrados numa tentativa gorada, em conjunto com a mãe, de contrabando para Espanha em tempo de vacas magras ou ainda umas laranjas perdidas, deslizando pelo rio, escapando ao alcance das mãos.
Feito assim o elogio, em que os mais críticos não deixarão de ver laivos de crítica, resta-nos fazer uma crítica que é um elogio: o autor apaga-se propositadamente, preferindo sempre a primeira pessoa do plural à primeira do singular, apagando-se no coletivo como que se o relato viesse de todos, da realidade vivida e não dele. E mesmo quando expressa crítica ou desagrado, como em relação à velha escola, nunca levanta a voz.
Tudo somado, entre as lendas e narrativas pessoais e as descrições gerais enquadradas pelo conhecimento científico posterior, há sempre neste livro uma espécie de diálogo surdo entre o pastor de rebanhos que o autor foi na infância e adolescência, e o pastor de ideias, teorias e conceitos, que passou a ser quando se formou e passou a lecionar. No sedimento desse confronto, resta sempre a poesia.