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A Porta Nova era um mundo. O mundo de Galopim

Luís Godinho texto Gonçalo Figueiredo foto

Aprendeu a conhecer a arte de sapateiro, sonhou ser carpinteiro, passou boa parte da sua infância a servir como caixeiro na mercearia do senhor Anselmo, aprendeu a nadar no “balneário” do Chafariz das Bravas, fez a primária na Escola de São Mamede e descobriu a paixão pela Geologia nas aulas de Ciências do professor Cassiano Vilhena. Galopim de Carvalho conduz-nos pelas suas memórias de Évora, cidade onde nasceu e onde viveu toda a infância e adolescência.

Nas décadas de 30 e 40 do século passado, garante Galopim de Carvalho, a Porta Nova em Évora, atual Largo Luís de Camões, era assim como “um centro comercial a céu aberto”. O “avô” dos dinossauros sabe do que fala. Professor catedrático jubilado da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, antigo diretor do Museu Nacional de História Natural, Galopim de Carvalho nasceu em Évora, a 11 de agosto de 1931. Precisamente na Porta Nova. “Desses anos [de infância e juventude] guardei memórias, menos ou mais personalizadas e pelos nomes que lhe dava”. Memórias que transpôs para o livro de crónicas “Évora Anos 30 e 40” (Âncora Editora).

“Ladeado de prédios centenários e de arcadas que protegem os peões do sol abrasador, no verão, e da chuva, no tempo dela, rematado num dos seus três vértices por um belo duplo arco granítico do Aqueduto da Água da Prata, este largo e as suas imediatas redondezas, dizia a minha mãe, tinham tudo o que era necessário para o dia-a-dia da casa”, refere o autor, lembrando a farmácia Rebocho Pais, ainda existente, mas também espaços já desaparecidos como o Café Camões, a drogaria do Lameira, a oficina do seu tio Manuel Almaça, a barbearia do Marcolino, a bomba de gasolina do Pimentel ou a mercearia Anselmo. Por ali cresceu, com incursões ao talho do Zé Torto, “Silva de seu nome, mas que toda a gente conhecia pela alcunha, devido ao seu acentuado estrabismo”, o estúdio de fotografia de Eduardo Nogueira, ou as lojas de fazendas do espanhol Emílio Ramos e do senhor Branco, “um daltónico que falava das cores dos tecidos como se as conhecesse”.

Tratam-se, segundo a opinião do historiador Francisco Bilou, autor do prefácio, de crónicas que constituem “um retrato social anti-cliché, até porque vividas na primeira pessoa. Se delas resulta algum sabor agridoce, a verdade é que todos os temas são tratados com profundo humanismo”, nada tendo de “nostalgia serôdia, muito menos de saudosismo”.

Acrescenta Francisco Bilou que a “força íntima” que alimenta os textos de Galopim de Carvalho “é gasta em demonstrar a crueza desse tempo pretérito, feito de desigualdades e injustiças, insalubre e insosso, de sobrevivência e subserviência, ainda que pintado, aqui e além de tons anedóticos e brejeiros, estes quase sempre disfarçando felicidades remediadas e inocências perdidas”. 

Um tempo em que foi criada a figura do fiscal dos isqueiros (1937), por regra “um pobre desgraçado, mais um bufo do que outra coisa, circulando por todo o lado onde houvesse fumadores”, e durante o qual o jovem Galopim, com não mais do que seis anos, já se habituara a ir comprar onças de tabaco, “a mando de um ou outro adulto”, para enrolar no papel de mortalha Zig Zag. “Os filhos, já com idade de ir às sortes [inspeção militar], não fumavam ao pé do pai, a não ser que este lhes desse licença. As adolescentes e a generalidades das mulheres não fumavam e mesmo uma ou outra que fugisse a esta condição não se atrevia a fumar em público”.

Pelo livro desfilam os espaços da cidade que percorria, da Casa das Limonadas ao café Estrela d’Ouro, do Jardim do Bacalhau ao Chafariz das Bravas, “um dos mais antigos dos que ladeiam a cidade”, onde o gado era levado a beber e cujo “balneário”, um tanque retangular com cerca de 15 por 20 metros, servia de piscina para rapazes em cuecas, “pois que calções de banho só um ou outro sabiam o que isso era”. Mais seguro que os pegos do Rio Dgebe, por ter pouca profundidade, “foi no balneário que eu e muitos rapazes da minha geração aprendemos, sem escola e mal, a nadar de bruços ou às braçadas”, lembra Galopim de Carvalho. Está bem de ver que raparigas e mulheres “nem se aproximavam da porta”.

Pelas suas memórias passa também a drogaria do Bacharel – “era lá que, a mandado da minha mãe, eu ia comprar o Flit, a solarine e o cresil [creolina] e, a mando do meu tio Almaça, o sal de azedas, os preguinhos e as cardas” – e o talho do seu primo Aníbal, a livraria e papelaria Nazareth, ainda existente, na Praça do Giraldo, ponto de encontro de intelectuais como o pintor António Charrua ou o escritor Vergílio Ferreira, que deu aulas na cidade, a Casa das Limonadas ou a mercearia do Anselmo. “Com total aceitação do patrão, do gerente e dos três caixeiros, passei grande parte de meu tempo nesta mercearia, na qualidade de vizinho, filho de freguês, bom rapaz que, brincando, sempre ajudava qualquer coisa”. Foi aqui que o futuro geólogo se “fez caixeiro” nos tempos livres, só não tendo ordem para mexer na faca. Quando a clientela era muita, “nem o patrão nem o caixeiro, que me mandava lá dentro, ao armazém, buscar toucinho da salgadeira, um bacalhau inteiro, uma barra de sabão, uma caixa de bolachas triunfo, ou fosse lá o que fosse, se davam conta” de que se tratava de um “rapazinho que ali andava a brincar aos crescidos”.

Na oficina de sapateiro do tio haveria de aprender “todos os passos” de fabrico do calçado, “desde o talhar do cabedal, pôr a sola de molho e batê-la numa pedra rebolada do rio, ao enformar e pôr viras”, sem esquecer o acabamento das solas. “Ficaram-me nos sentidos os cheiros da água da sola, do sal de azedas, da cera, da massa de sapateiro e da cola de contacto para os saltos de borracha, que era a mesma com que se remendavam os pneus das bicicletas”. A carpintaria do “mestre” Roberto seria outro dos seus locais de paragem, tal como a queijaria da sua tia Rosalina e das três filhas, “todas mulheres sem homem”. 

Pelo livro passa também um reavivar da memória de figuras e hábitos da cidade, da gastronomia e de espaços familiares, como a grande chaminé, própria para lume de chão, onde nos tempos da matança se penduravam os enchidos. “De inverno, era bom sentarmo-nos todos à roda do lume, uns em cadeirinhas, outros em mochos, ouvindo histórias, embalados no crepitar da lenha, olhos postos na luz azul-lilás saída de entre os paus de azinho, apoiados num grande lenho”.

À evocação de vivências familiares e de personalidades de Évora, como o cantor Francisco José, seu irmão, ou o escritor Antunes da Silva, um segundo primo que, “ainda-bem-não” era levado pela PIDE para Lisboa, “onde o interrogavam e brutalizavam, guardando-o depois por uns tempos para castigo dos seus crimes contra a segurança do Estado e para que lhe passassem as nódoas negras”. Não faltam referências aos jornais, às feiras e às festas, ao seu percurso escolar, primeiro na Escola de São Mamede, depois no Liceu de Évora, onde durante três décadas pontificou o reitor António Bartolomeu Gromicho e onde as lições de Ciências estavam a cargo de Cassiano Vilhena, um professor vindo do Liceu Gil Vicente, em Lisboa, e que teve “influência decisiva” na futura vida profissional de Galopim de Carvalho. “Com o professor Cassiano os minerais e as rochas deixaram de ser as pedras inertes, sem história, e os respetivos exemplares, arrumados em tabuleiros e armários de serviço, passaram a ser vistos como documentos da evolução do nosso planeta”. 

Sem que, na altura, o pudesse adivinhar, assim se iniciava a caminhada de Galopim de Carvalho pelo mundo da Ciência, com um doutoramento em Sedimentologia pela Universidade de Paris, a direção do Museu Nacional de História Natural, onde foi mentor e responsável científico por diversos projetos de investigação nas áreas da Geologia Marítima e da Paleontologia dos Dinossáurios, além de ser autor de dezenas de livros e doutor honoris causa pela Universidade de Évora.

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