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A nova vida de Yuliia Radu, a 3500 quilómetros da guerra

Margarida Maneta texto | Gonçalo Figueiredo foto

De há dois meses para cá, após a invasão russa, a comunidade ucraniana passou a ser a segunda maior residente em Portugal. São agora mais de 45.500 cidadãos, tendo chegado cinco famílias a Estremoz.

O telefone toca. Hesita. Se do outro lado falarem em português não vai conseguir perceber o que dizem. Atende, receosa, mas de imediato respira de alívio. Expressavam-se em ucraniano, mas com uma pergunta a que não sabia responder: “Yuliia, por que motivo é que não está nas aulas?”

“Mas de que aulas estariam a falar?”, interrogou-se. Yuliia Radu, de 27 anos, chegou há um mês a Portugal, depois de quatro dias de viagem. Fugir da guerra não estava planeado, mas os bombardeamentos nas cidades vizinhas eram cada vez mais frequentes e cair uma bomba na sua localidade era apenas uma questão de tempo. “Hoje parece que a zona está calma, mas na verdade ninguém está seguro porque não se sabe o que pode acontecer. É um conflito imprevisível, longe de estar resolvido”. 

Veio à boleia dos comboios humanitários, trazendo somente a roupa que tinha vestida, uma mochila e o filho, Timur, no colo. Demorou 20 horas de comboio para chegar à cidade ucraniana de Lviv. Não se demorou por lá. Ouviu, ao longe, um motorista que gritava: “Vou para a fronteira. Quem quiser ir, faça favor”. Aqui não houve hesitações. Confiou no instinto, não se sabe se de refugiada, de mãe ou de “guerreira”.

As janelas dos comboios estavam tapadas com papel. Lá dentro não entrava luz. Foi a forma encontrava para evitar dar a perceber ao invasor que por ali se moviam muitas vidas. Inclusivamente, ao passar pelas cidades mais frequentemente bombardeadas, o comboio parava. As pessoas iam assustadas, via-se nos rostos e nos gestos. O silêncio era perturbador, mas os pensamentos ainda mais. Qualquer um dos ali estavam tinha plena consciência de que não é por se estar a fugir da guerra que ela deixa de ser real.

Yuliia Radu nem sequer conseguia comer, porque tinha medo que lhe chegasse a vontade de ir à casa de banho, uma única instalação sanitária para aquela pequena multidão que procurava sair do país. Com sorte. “Eu dizia-lhe para se alimentar porque precisava de amamentar o Timur e ter força”, conta ao Brados do Alentejo a mãe, Svetlana Radu. “Mas com os nervos uma pessoa parece que nem consegue comer”, reconhece.

Chegada à fronteira, esteve 11 horas de pé num mar de gente, onde maioritariamente se encontravam outras mulheres, crianças e idosos. O Timur sempre no colo, com apenas um ano e quatro meses. Quando questionada se o bebé chorou muito, Yuliia não precisou que a mãe lhe traduzisse a pergunta. Abanou a cabeça num assertivo sim. “Ele estava cansado e não compreendia o que se estava a passar à sua volta. Era muita gente e nos seus olhos eu via susto”, conta. 

Nunca questionou se ia mesmo conseguir chegar a Portugal. “O melhor era não pensar”, afirma a mãe. Por cá, chorava-se muito. Lá ainda mais. “O meu corpo estava aqui, mas a minha cabeça estava lá com ela”, confessa Svetlana. “Eram filas de gente que não tinha nada”, a não ser a esperança de conseguir sair da Ucrânia para um outro lugar… para qualquer lado. “Se saísse da fila, perdia o lugar. Tive de aguentar”. 

Chegada à Polónia, muitos voluntários se aproximaram para oferecer comida ou objetos úteis. No caso desta jovem ucraniana, além de comida, como uma sopa quente para si e umas bolachas para Timur, ofereceram-lhe um carrinho para transportar o bebé. A partir daí, a viagem foi feita “a três”: a mãe, o filho e o carrinho para o transportar não se largaram mais e hoje são vistos em conjunto na cidade de Estremoz. 

Já em terras polacas, Yuliia foi encaminhada para um espaço que outrora armazenava produtos alimentares e que agora se tornou num dormitório de refugiados. Neste supermercado, deitou-se pela primeira vez desde que saiu de casa. Já tinham passado cerca de três dias. Na manhã seguinte, através de uma amiga, conseguiu comprar um bilhete de avião com destino a Lisboa. 

“Tivemos muita sorte. Há quem esteja na fronteira, sentado, esperando transporte voluntário durante dias ou até mesmo semanas”, conta. “Decidimos pagar um bilhete, por qualquer valor, mas cientes de que quando se compra de hoje para amanhã o preço é muito alto”.

Foram cerca de 150 euros, mas o valor que aparecia na pesquisa era bem mais elevado. Um pouco de sorte, no meio de uma imensa tragédia humanitária. “Não sabemos bem porquê, mas talvez ao inserir os dados, tenham aplicado um desconto para jovens ucranianos”.

Do que se apercebeu, era a única refugiada naquele voo. No aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa, esperava-a uma outra ucraniana, conhecida de longa data, a viver há quatro anos em Portugal. Mãe e filho descansaram nessa noite na capital portuguesa para na manhã seguinte apanhar um autocarro até Estremoz. 

Ainda que já esteja num território que considera seguro, a mente atraiçoa-a: por consecutivas noites, Yuliia Radu acorda sobressaltada, após sonhar com corpos espalhados no meio das ruas, à semelhança do que aconteceu em Bucha; ou com soldados pedófilos, tendo de proteger o seu filho.

“O coração fica sempre em casa”

Por estes dias, quem vê Yuliia à porta da Creche São Francisco de Assis não a crê uma estranha na cidade de Estremoz. Ouvem-se repetidos “bons dias” e para a coordenadora das instalações sai mesmo uma “boa Páscoa”, entre risos de quem se vai ambientando a esta nova vida.

Já de Timur, à primeira vista, não se pode dizer o mesmo. Se o dia nasce solarengo, com os pardais a chilrear bem alto, este bebé chega à creche com as lágrimas a escorrer-lhe pela cara e o choro abafa o canto dos animais. Coincidentemente ou não, vem vestido com as cores da Ucrânia: a blusa tem uma risca azul e outra amarela, bem como os ténis azuis de forro amarelo. A quem ainda restar dúvidas, estas desaparecem quando a mãe tira um brinquedo da mochila para lhe dar: o carro também traz o azul do céu e o amarelo do trigo. 

“Todos os dias é isto, mas assim que entra na sala é um espetáculo”, conta a avó. Este país não é estranho a Timur. Na verdade, ele nasceu em Évora numa das visitas anuais que a mãe fazia aos familiares desde que tem 18 anos. “A última vez que eles cá tinham estado foi em outubro, longe de imaginar que agora voltariam e muito menos por causa desta situação”, revela Svetlana. 

Na Ucrânia as mães ficam com os bebés até eles terem um ano e meio de idade. Timur nunca andou na creche. Quem o vê à porta não acredita, mas a verdade é que se tem ambientado bem.  “Logo no primeiro dia, comeu a sopa e o segundo prato sozinho. Dormiu a sesta e lanchou dois iogurtes”, conta Dulce Garcia, coordenadora da Creche São Francisco de Assis. Ao ouvi-la e ao ver as fotografias que registou, Yuliia e Svetlana permanecem incrédulas. “Em casa ele não come sozinho e só dorme se for com a mãe”.

Ainda que confortavelmente sentadas, enquanto Dulce Garcia revela como tem sido a adaptação de Timur na creche, sente-se por parte da família ucraniana alguma inquietação. É que não sabem por quanto tempo vai durar esta ajuda. A coordenadora tranquiliza-as: “A minha oferta mantém-se durante o tempo que ele cá estiver”. 

“Assisti à reunião da Assembleia Municipal em que a vereadora Sónia Caldeira afirmou que a cidade ia receber refugiados. Nessa noite, pensei logo em oferecer-me para aceitar uma ou duas crianças aqui na instituição, mas não o disse a ninguém”, relembra Dulce Garcia.

Contactou, em seguida, o município para demonstrar a sua disponibilidade e vontade. “A dada altura, juntámos as entidades e percebemos que contributo é que cada uma podia dar. Depois, juntámos as famílias que estavam a chegar para fazermos um levantamento das suas necessidades”, explica Sónia Caldeira, vice-presidente da Câmara Municipal de Estremoz. A partir daí, seguiu-se a articulação entre estas na área da saúde, da habitação, do desporto e da educação.

Isso justifica a chamada que Yuliia recebeu. Em articulação com o Instituto do Emprego e Formação Profissional, as famílias residentes em Estremoz receberam computadores e foram contactadas por tradutores para assistirem a aulas de português. Em declarações ao Brados do Alentejo, Luís Miguel dos Santos, professor de uma das três turmas que arrancaram no Alentejo, explica que se trata de alunos com “extrema facilidade em aprender”. 

E acrescenta: “Em primeiro lugar, porque de momento não têm mais nada para fazer”. Depois porque precisam da língua “para comunicar” e também porque através do computador acedem ao tradutor, “o que faz com que a aquisição de conhecimentos seja mais rápida”. 

“O objetivo final é dar-lhes ferramentas para se conseguirem movimentar socialmente”, esclarece Luís Miguel dos Santos. Daí que o plano curricular aborde, num primeiro contacto, o alfabeto e as pronúncias, passando, posteriormente, pelos números e pelo vocabulário do dia-a-dia, como “quanto custa?” ou “onde é que é?”. 

Apesar de ser fluente em inglês, Yuliia Radu acha a língua portuguesa “difícil”. E, aborrecida de dedicar-se somente às aulas, procura agora um trabalho na área da hotelaria e das limpezas, por não se exigir que domine tanto o idioma. Na sua área de formação, a contabilidade, não coloca nem a hipótese de encontrar uma oportunidade para já. 

Entusiasmada pela Páscoa – festejada pela Igreja Ortodoxa uma semana depois – preparou com a mãe uma Paska, pintaram alguns ovos e colocaram tudo num cesto, acompanhado de manteiga, paio, requeijão e alho. À parte disso, reencontraram a comunidade ucraniana ortodoxa do distrito, em Évora, para celebrar uma missa. 

A jovem ucraniana não sabe quando tempo vai permanecer aqui, contudo, não tenciona ficar em território português para sempre. “Ela veio porque tem aqui a família. E até gosta, mas não está em casa, não tem as suas coisas”, explica Svetlana. “Assim que o conflito melhorar, ela vai voltar porque o coração fica sempre em casa”. 

Ainda que, reconhecem, se veja a regressar a um país em grande parte destruído e com muitos vazios uma vez que os seus amigos e conhecidos também estão entre as vítimas, de quem vai sabendo do falecimento pelas redes sociais, numa língua que acredita ser universal: a da saudade.

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