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A antropóloga que estuda a comunidade cigana no Alentejo

Alexandre Barahona, texto | Gonçalo Figueiredo, fotografia

Muitas vezes se diz que os portugueses são racistas com os ciganos. O que por si só é um pleonasmo, já que os próprios ciganos são portugueses. Contudo e admitindo que sim, também podemos questionar se os ciganos serão igualmente racistas com aqueles que não o são. Mas será de racismo que estamos a falar, ou será antes dos resultados das condições de extrema pobreza?

Em Portugal contam-se entre 50 a 70 mil pessoas, num universo de 10 milhões de ciganos, espalhados hoje pela Europa fora. A chegada ao “Velho Continente” deu-se no século XIV, sendo os grupos originários do nordeste da Índia, que aqui chegaram atravessando os países da Europa central, o sul de França e a Andaluzia espanhola.

De tez escura e traços afilados, viajavam de um lado para o outro, comunicando numa língua “estranha” e vestidos de trajos coloridos. Provocavam curiosidade e estranheza às populações por onde passavam, desconhecedoras das suas origens, e construindo teorias ou preconceitos em seu redor. Dizia-se que viriam do Egito, chamados assim de egipcianos, ou mais commumente de ciganos.

Há mais de sete séculos que fazem parte da “nossa” paisagem social, sendo mesmo assim sempre alvo de perseguições, das mais anódinas às mais tristemente famosas, como foram outrora vítimas da Inquisição, também recentemente se estima que cerca de um milhão de ciganos tenha perdido a vida nos campos de concentração nazis.

A antropóloga Agostina Nievas reconhece que “o racismo é reproduzido na estrutura de Educação que temos, em Portugal como em todo o lado. E o racismo é sempre em várias direções, não é hierárquico. Portanto, existe sim, da população em relação aos ciganos, e dos ciganos em relação a quem não o é”. Mas, separa a população do Estado. O Estado tem outras responsabilidades, até porque os ciganos são portugueses como todos os outros.

Agostina del Valle Nievas nasceu na Argentina, onde se licenciou, e veio para Portugal fazer o seu doutoramento no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, elegendo Montemor-o-Novo para residir desde 2020. Sempre se preocupou em “apadrinhar” quem mais necessitava, apesar de não ter especialmente recursos para tal.

Chegada ao Alentejo perguntou, depois de iniciar o doutoramento, qual era a população que estava em condições de maior risco social. Um amigo sugeriu que seriam os ciganos. E de iniciativa própria, sozinha, estabeleceu o contacto com estes portugueses nómadas, primeiro em Estremoz, depois em Montemor-o-Novo e em Évora.

“Sempre tive este cuidado de atuar ajudando socialmente os mais desfavorecidos, na Argentina já o fazia em bairros sociais. Os meus pais sempre procuraram apoiar as pessoas mais pobres, os meus avós também o fizeram… então é uma motivação familiar, vem desde criança” relembra Agostina, que nesse sentido tudo faz sozinha, sem ajuda de instituições ou do Estado.

De início foi difícil, recorda, porque não havia muito diálogo e “eles tinham tantas necessidades, que só pediam coisas”. Queriam telemóveis novos, sapatos, roupa… era uma avalanche, de tal forma que depressa teve de lhes travar a impetuosidade, explicando que, “poderia ajudar em algumas coisas, mas que em muitas outras não tinha capacidade para isso”.

Depressa percebeu uma necessidade real, que gera um mal-entendido comum entre nós. Os ciganos nómadas, não o querem ser. Todos gostariam de ter um teto, uma casa, para se fixarem e terem estabilidade. Apenas continuam nómadas, a viver em tendas, obrigados à força e não por opção. Era aquilo que o saudoso Fernando Moital defendia, quando os apelidava de “nómadas compulsivos”.

Quando Agostina conheceu o Fernando, em Évora, percebeu essa falha na sociedade portuguesa, onde parte da população cigana se vê obrigada a viver em tendas, sendo também eles portugueses, gerações atrás de gerações. “Tentei então procurar casas para alugarem. Com o dinheiro que recebem do Rendimento Social de Inserção poderiam pagar cerca de 500 euros, mas ninguém lhes quer arrendar nada. Dizem que vão sujar tudo e partir tudo”, desabafa a investigadora.

Assim sendo, estas comunidades vivem em situações muito precárias, com uma lona a proteger as famílias sob o abrasador sol do verão e o intenso frio do inverno, sem casas de banho, nada. “Ninguém gostaria de viver assim, e os ciganos que eu conheço, também não”, afirma categoricamente, desmentindo aquela crença de que os ciganos vivem em tendas porque gostam e é a maneira deles viverem.

Na realidade, já não estamos a falar de ciganos, mas apenas de pessoas a viverem na pobreza extrema. Geracionalmente, a viverem em pobreza extrema. Além disso, estes ciganos têm de estar sempre preparados para se irem embora. A todo o momento a GNR pode chegar e, por ordens ou denúncias anónimas, obrigá-los a levantar o acampamento, a partirem “ao Deus dará”.

“Tem de haver estratégias, políticas de integração, tendo em conta as necessidades destas pessoas enquanto sujeitos. Diz-se que os ciganos não conseguem adaptar-se às normas da sociedade, mas há muitas coisas que têm de ser muito bem faladas. Não se pode decretar que têm de deixar de ser ciganos para se integrarem na sociedade”, esclarece a cientista que acompanha esta população nómada, deslocando-se entre a zona de Montemor-o-Novo e Évora.

INVESTIMENTO “DE CORPO E ALMA”

Não deve ser fácil para Agostina Nievas, além do trabalho de investigação para a sua tese de doutoramento, em escrita, investir-se assim socialmente “de corpo e alma”, num universo diferente, em terras diferentes das suas.

Certa vez, conta, ligou-lhe uma mulher cigana a pedir para ir buscar uns familiares que estavam no supermercado. Com o extremo calor do verão alentejano, era-lhes muito difícil caminhar os cerca de três quilómetros que distavam do acampamento. E Agostina lá foi, de carro, ajudar. Chegada à superfície comercial, deparou-se com três homens, todos visivelmente embriagados pelo álcool. Respirou fundo, e propôs que entrassem no seu veículo. Retorquiram que se pudesse esperar um pouco, eles tinham de entrar no supermercado para comprar fraldas para os bebés e farinha. Ao que ela aceitou. Passados 10 minutos saem carregados com dois sacos repletos de cerveja. De fraldas e farinha, nada…

Foi um dos episódios que a marcou e, apesar de os levar ao acampamento, decidiu nada dizer naquele dia, “não era o momento certo”, para não criar discussão. No entanto, no dia seguinte, armou-se de coragem, regressando para falar com as mulheres e sobretudo com os homens que transportara. Eles ficaram surpreendidos por uma mulher ter aquela coragem, e explicaram que tinham vindo do Hospital de Évora, nessa tarde, onde visitaram uma bebé que ali estava internada, e sim, de facto tinham bebido muito por causa disso. A argentina percebeu que era uma conjuntura complexa, mas decidiu que era o momento para se defender, exigindo-lhes respeito.

A honra e o respeito de cada indivíduo, enquanto elemento de determinada família, são os princípios basilares da estrutura de leis e ordem social cigana. Segundo a socióloga Sónia Teixeira Costa, “as ações e comportamentos dos indivíduos (ciganos) só podem assumir uma de duas condições: estar de acordo com a lei ou o seu oposto, conduta que desonra e envergonha o próprio e a família, porque a contraria”.

Apesar de Agostina não pertencer à comunidade cigana, a partir desse instante diz que aqueles homens “nunca mais lhe faltaram ao respeito”, e quando por vezes ela visitava as suas famílias aconteceu escutar: “Olhe, é melhor não falar comigo, porque eu já bebi demais e não quero causar problemas”.

A ideia de “causar problemas” parece andar de mãos dadas com os ciganos, pelos comportamentos que por vezes têm em sociedade. Passear nas ruas e ir deitando lixo para o chão, por exemplo, quando têm ao lado um caixote do lixo. “Pois, concordo. Mas nem toda a gente pode ser socializada, conforme padrões específicos. E muitos desses comportamentos não existem porque são ciganos, são comportamentos característicos como resultado da extrema pobreza”, lamenta Agostina Nievas, assegurando que também viu isso na Argentina. “E vi-o na Alemanha, onde todos pensam que não há pobres, mas há muitos pobres, e sim, vi essas pessoas pobres terem os mesmos comportamentos, e não eram ciganos. Isso são padrões sim, mas da pobreza, e até mesmo motivados por instinto de revolta, de reação perante a sua condição”.

A cultura do individualismo e da meritocracia tem estas consequências. Quando não se consegue de uma forma, procura-se alcançá-lo de outra. Contudo esta questão merece ser analisada com olhares novos, de todas as partes, e ser como foi dito, “muito bem falada”.

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